A diversidade cultural: algumas reflexões
O ser humano se constitui por meio de um processo complexo: somos ao
mesmo tempo semelhantes (enquanto gênero humano) e muito diferentes (enquanto
forma de realização do humano ao longo da história e da cultura). Podemos dizer
que o que nos torna mais semelhantes enquanto gênero humano é o fato de todos
apresentarmos diferenças: de gênero, raça/etnia, idades, culturas,
experiências, entre outros. E mais: somos desafiados pela própria experiência
humana a aprender a conviver com as diferenças. O nosso grande desafio está em
desenvolver uma postura ética de não hierarquizar as diferenças e entender que
nenhum grupo humano e social é melhor ou pior do que outro. Na realidade, somos
diferentes.
Ao discutir a diversidade cultural, não podemos nos esquecer de pontuar
que ela se dá lado a lado com a construção de processos identitários. Assim
como a diversidade, a identidade, enquanto processo, não é inata. Ela se
constrói em determinado contexto histórico, social, político e cultural.
Jacques d’Adesky (2001, p.76) destaca que a identidade, para se constituir como
realidade, pressupõe uma interação. Ao contrário, ela é negociada durante a
vida toda dos sujeitos por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente
interior, com os outros. Tanto a identidade pessoal quanto a identidade social
são formadas em diálogo aberto. Estas dependem de maneira vital das relações
dialógicas com os outros.
A diversidade cultural varia de contexto para contexto. Nem sempre
aquilo que julgamos como diferença social, histórica e culturalmente construída
recebe a mesma interpretação nas diferentes sociedades. Além disso, o modo de
ser e de interpretar o mundo também é variado e diverso. Por isso, a
diversidade precisa ser entendida em uma perspectiva relacional. Ou seja, as características, os atributos ou
as formas “inventadas” pela cultura para distinguir tanto o sujeito quanto o
grupo a que ele pertence dependem do lugar por eles ocupado na sociedade e da
relação que mantêm entre si e com os outros. Não podemos esquecer que essa
sociedade é construída em contextos históricos, socioeconômicos e políticos
tensos, marcados por processos de colonização e dominação. Estamos, portanto,
no terreno das desigualdades, das identidades e das diferenças.
Trabalhar com a diversidade na escola não é um apelo romântico do final
do século XX e início do século XXI. Na realidade, a cobrança hoje feita em
relação à forma como a escola lida com a diversidade no seu cotidiano, no seu
currículo, nas suas práticas faz parte de uma história mais ampla. Tem a ver
com as estratégias por meio das quais os grupos humanos considerados diferentes
passaram cada vez mais a destacar politicamente as suas singularidades,
cobrando que as mesmas sejam tratadas de forma justa e igualitária,
desmistificando a idéia de inferioridade que paira sobre algumas dessas
diferenças socialmente construídas e exigindo que o elogio à diversidade seja
mais do que um discurso sobre a variedade do gênero humano. Ora, se a
diversidade faz parte do acontecer humano, então a escola, sobretudo a pública,
é a instituição social na qual as diferentes presenças se encontram. Então, como essa instituição poderá omitir o debate sobre a
diversidade? E como os currículos poderiam deixar de discuti-la?
Mas o que entendemos por currículo? Segundo Antonio Flávio B. Moreira e
Vera Maria Candau (2006, p.86) existem várias concepções de currículo, as quais
refletem variados posicionamentos, compromissos e pontos de vista teóricos. As
discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, debates sobre
os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações sociais,
os valores e as identidades dos nossos alunos e alunas.
Os autores se apóiam em Silva (1999), ao
afirmarem que, em resumo, as questões curriculares são marcadas pelas
discussões sobre conhecimento, verdade, poder e identidade.
O currículo possui um caráter político e histórico e também constitui
uma relação social, no sentido de que a produção de conhecimento nele envolvida
se realiza por meio de uma relação entre pessoas.
Mesmo quando pensamos no currículo como uma coisa, como uma listagem de
conteúdos, por exemplo, ele acaba sendo, fundamentalmente, aquilo que fazemos
com essa coisa, pois, mesmo uma lista de conteúdos não teria propriamente
existência e sentido, se não se fizesse nada com ela. Nesse sentido, o
currículo não se restringe apenas a idéias e abstrações, mas a experiências e
práticas concretas, construídas por sujeitos concretos, imersos em relações de
poder. O currículo pode ser considerado uma atividade produtiva e possui um
aspecto político que pode ser visto em dois sentidos: em suas ações (aquilo que
fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos faz). Também pode ser considerado um
discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a
sociedade, participa do processo de constituição de sujeitos (e sujeitos também
muito particulares). Sendo assim,
as
narrativas contidas no currículo, explícita ou implicitamente, corporificam noções
particulares sobre conhecimento, sobre formas de organização da sociedade,
sobre os diferentes grupos sociais. Elas dizem qual conhecimento é legítimo e
qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que
é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é
mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são
(Silva, 1995, p. 195).
A produção do conhecimento, assim como sua seleção e legitimação, está
transpassada pela diversidade. Não se trata apenas de incluir a diversidade
como um tema nos currículos. As reflexões do autor nos sugerem que é preciso
ter consciência, enquanto docentes, das marcas da diversidade presentes nas
diferentes áreas do conhecimento e no currículo como um todo: ver a diversidade
nos processos de produção e de seleção do conhecimento escolar.
O autor ainda adverte que
as
narrativas contidas no currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos
sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos sociais podem
apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos de
qualquer representação. Elas, além disso, representam os diferentes grupos
sociais de forma diferente: enquanto as formas de vida e a cultura de alguns
grupos são valorizadas e instituídas como cânone, as de outros são
desvalorizadas e proscritas. Assim, as narrativas do currículo contam histórias
que fixam noções particulares de gênero, raça, classe – noções que acabam
também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos (de
autoridade) (Silva,
1995, p. 195).
A perspectiva de currículo acima citada poderá nos ajudar a questionar a
noção hegemônica de conhecimento que impera na escola, levando-nos a refletir
sobre a tensa e complexa relação entre esta noção e os outros saberes que fazem
parte do processo cultural e histórico no qual estamos imersos. Só nos resta
agir, sair do imobilismo e da inércia e cumprir a nossa função pedagógica
diante da diversidade: construir práticas pedagógicas que realmente expressem a
riqueza das identidades e da diversidade cultural presente na escola e na
sociedade.
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