CRUZANDO FRONTEIRAS: TEORIA, MÉTODO E EXPERIÊNCIAS FREIREANAS, por Moacir Gadotti.
CRUZANDO
FRONTEIRAS:
TEORIA,
MÉTODO E EXPERIÊNCIAS FREIREANAS, por Moacir Gadotti.
As
teorias de Paulo Freire cruzaram as fronteiras das disciplinas, das ciências,
para além da América Latina. Ao mesmo tempo em que as suas reflexões foram
aprofundando o tema que ele perseguiu por toda a vida – a educação como prática
da liberdade – suas abordagens transbordaram-se para outros campos do
conhecimento, criando raízes nos mais variados solos – desde os mocambos do
Recife às comunidades burakunins do Japão - fortalecendo teorias e práticas
educacionais, bem como auxiliando reflexões não só de educadores, mas também de
médicos, terapeutas, cientistas sociais, filósofos, antropólogos e outros
profissionais. Seu pensamento é considerado um modelo de transdisciplinaridade.
Não
podemos ver a Freire apenas como um educador de adultos ou como um acadêmico,
ou reduzir sua obra a uma técnica ou metodologia. Ela deve ser lida dentro do
contexto da "natureza profundamente radical de sua teoria e prática
anti-colonial e de seu discurso post-colonial", como no diz Henry Giroux
(in Peter Maclaren and Peter Leonard, organizadores, Paulo Freire: a
Critical Encounter, Routledge, 1993, p. 177). Isso nos vai mostrar que
Freire assumiu o risco de cruzar fronteiras para poder ler melhor
o mundo e facilitar novas posições sem sacrificar seus compromissos e
princípios.
As
barreiras e fronteiras estão sempre à nossa volta. Os intelectuais e educadores
que ocupam fronteiras muito estreitas não percebem que elas também tem a
capacidade de aprisioná-los. Nesse sentido, é preciso relevar a importância da
obra de Paulo Freire em termos mais globais. Seria ingênuo considerar a sua
pedagogia como uma pedagogia só aplicável no chamado "Terceiro
Mundo".
As
primeiras experiências de Paulo Freire, com a educação de adultos, datam da
década de 50, no nordeste brasileiro, aplicando o método que leva o seu nome,
passando pelo Chile na década de 60 e auxiliando a reconstrução post-colonial
de novos sistemas educacionais em diversos países da África, na década de 70.
Voltando ao Brasil, depois de 16 anos de exílio, envolveu-se, na década de 80,
na construção democrática da escola pública popular na América Latina. A última
grande experimentação prática de suas idéias deu-se no início da década de 90 em São Paulo (Brasil), onde
ele foi Secretário de Educação, promovendo a formação crítica do professor, a
educação de adultos, a reestruturação curricular e a interdisciplinaridade.
O que oferecia ele de tão original para ser-se
conhecido internacionalmente?
Numa
época de educação burocrática, formal e impositiva ele se contrapôs a ela,
levando em conta as necessidades e problemas da comunidade e as diferenças
étnico-culturais, sociais, de gênero, e os diferentes contextos. Ele procurava
empoderar as pessoas mais necessitadas para que elas mesmas pudessem tomar suas
próprias decisões, autonomamente. Seu método pedagógico aumentava a
participação ativa e consciente.
A
seguir, depois de apresentar brevemente alguns dados biobibliográficos de Paulo
Freire, procurarei mostrar os temas centrais de sua teoria e os passos do seu
método pedagógico, mostrando o pouco do seu legado como educador, enfocando
principalmente a práxis político-pedagógica dos seus últimos anos dentro do
contexto educacional brasileiro.
1. Apresentando Paulo
Freire
Paulo
Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, no Recife,
Pernambuco (Brasil), uma das regiões mais pobres do país, onde, logo cedo, pôde
experimentar as dificuldades de sobrevivência das classes populares. Trabalhou
inicialmente no SESI (Serviço Social da Indústria) e no Serviço de Extensão
Cultural da Universidade do Recife. Ele foi quase tudo o que deve ser como
educador, de professor de escola a criador de idéias e "métodos". Sua
filosofia educacional expressou-se primeiramente em 1958 na sua Tese de
concurso para a Universidade do Recife, e, mais tarde, como professor de
História e Filosofia da Educação daquela Universidade, bem como em suas
primeiras experiências de alfabetização como a de Angicos, Rio Grande do Norte,
em 1963, precedida por trabalhos desenvolvidos tanto em Pernambuco quanto no
Estado da Paraíba.
A
coragem de pôr em prática um autêntico trabalho de educação que identifica a
alfabetização com um processo de conscientização, capacitando o oprimido tanto
para a aquisição dos instrumentos de leitura e escrita quanto para a sua
libertação, fez dele um dos primeiros brasileiros a serem exilados. A
metodologia por ele desenvolvida foi muito utilizada no Brasil em campanhas de
alfabetização conscientizadora e, por isso, ele foi acusado de subverter a
ordem instituída. Foi preso após o Golpe Militar de 1964 e, depois de 72 dias
de reclusão, foi convencido a deixar o país. Exilou-se primeiro no Chile, onde,
encontrando um clima social e político favorável ao desenvolvimento de suas
idéias, desenvolveu, durante 5 anos, trabalhos em programas de educação de
adultos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária (ICIRA). Foi aí que
escreveu, em 1968, a
sua principal obra: Pedagogia do oprimido.
Em
1969, trabalhou como professor na Universidade de Harvard, em estreita
colaboração com numerosos grupos engajados em novas experiências educacionais
tanto em zonas rurais quanto urbanas. Durante os 10 anos seguintes, foi
Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas,
em Genebra (Suíça). Nesse período, deu consultoria educacional junto a vários
governos do "Terceiro Mundo", principalmente na África.
Em
1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil para
"reaprender" seu país, como afirmou na época. Lecionou na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, tornou-se Secretário de Educação no
Município de São Paulo, maior cidade do Brasil. Durante seu mandato, fez um
grande esforço na implementação de movimentos de alfabetização, de revisão
curricular e empenhou-se na recuperação salarial dos professores.
Casou-se,
em 1944, com a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem teve
cinco filhos. Após a morte de sua primeira esposa, casou-se com Ana Maria
Araújo Freire, uma ex-aluna.
Paulo
Freire é autor de muitas obras. Entre elas: Educação: prática da liberdade (1967),
Pedagogia do oprimido (1968), Cartas à Guiné-Bissau (1975),
Pedagogia da esperança (1992), À sombra desta mangueira (1995). Foi
reconhecido mundialmente pela sua práxis educativa através de numerosas
homenagens. Além de ter seu nome adotado por muitas instituições, é cidadão
honorário de várias cidades no Brasil e no exterior. A Paulo Freire foi
outorgado o título de doutor Honoris Causa por vinte e sete
universidades. Por seus trabalhos na área educacional, recebeu, entre outros,
os seguintes prêmios: "Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento"
(Bélgica, 1980); "Prêmio UNESCO da Educação para a Paz" (1986) e
"Prêmio Andres Bello" da Organização dos Estados Americanos, como
Educador do Continentes (1992). No dia 10 de abril de 1997, lançou seu último
livro, intitulado "Pedagogia da Autonomia: Saberes
necessários à prática educativa". Paulo Freire
faleceu no dia 2 de maio de 1997 em São Paulo , vítima de um infarto agudo do
miocárdio.
Vivi
e trabalhei intimamente com Paulo Freire durante 23 anos. Alguns dias antes de
sua morte estávamos discutindo vários projetos para serem desenvolvidos pelo
Instituto Paulo Freire (IPF), que foi, para ele um espaço de discussão nas
novas perspectivas educacionais. Pretendia oferecer vários cursos,
principalmente para estudantes estrangeiros. Morreu em plena atividade
intelectual, com um livro para terminar e muitos projetos a caminho.
2. Originalidade do
"Método Paulo Freire"
Com
certeza, podemos dizer que o pensamento de Paulo Freire é um produto
existencial e histórico. Ele forjou seu pensamento na luta, na práxis,
entendida esta como "ação + reflexão", como ele a definia. Ele nos
dizia que práxis nada tinha a ver com a conotação freqüente de
"prática" em sua acepção pragmatista ou utilitária. Para ela práxis é
ação transformadora.
Eu
não vou recordar aqui a sua longa trajetória de educador, bastante conhecida.
Todavia, quero enfatizar o quanto foi importante para a constituição da sua
teoria do conhecimento, a leitura do contexto onde nasceu e viveu, durante a
década de 50, no Nordeste brasileiro e o contexto latino-americano da época do
exílio no Chile, na década de 60.
A
sociedade brasileira e latino-americana da década de 60 pode ser considerada
como o grande laboratório onde se forjou aquilo que ficou conhecido como o
"Método Paulo Freire". A situação de intensa mobilização
política desse período teve uma importância fundamental na consolidação do
pensamento de Paulo Freire, cujas origens remontam à década de 50. O momento
histórico que Paulo Freire viveu no Chile foi fundamental para explicar a
consolidação da sua obra, iniciada no Brasil. Essa experiência foi fundamental
para a formação do seu pensamento político-pedagógico. No Chile, ele encontrou
um espaço político, social e educativo muito dinâmico, rico e desafiante,
permitindo-lhe reestudar seu método em outro contexto, avaliá-lo na prática e
sistematizá-lo teoricamente.
Por
outro lado, na constituição do seu método pedagógico, Paulo Freire
fundamentava-se nas ciências da educação, principalmente a psicologia e a
sociologia; teve importância capital a metodologia das ciências sociais.
A sua teoria da codificação e da descodificação das palavras e temas geradores
(interdisciplinaridade), caminhou passo a passo com o desenvolvimento da chamada
pesquisa participante.
O
que chamou a atenção dos educadores e políticos da época foi o fato de que o
método Paulo Freire "acelerava" o processo de alfabetização de
adultos. Paulo Freire não estava aplicando ao adulto alfabetizando o mesmo
método de alfabetização aplicado às crianças. É verdade, outros já estavam
pensando da mesma forma. Todavia, foi ele o primeiro a sistematizar e
experimentar um método inteiramente criado para a educação de adultos.
De
maneira esquemática, podemos dizer que o "Método Paulo Freire"
consiste de três momentos dialética e interdisciplinarmente entrelaçados:
a) A investigação temática,
pela qual aluno e professor buscam, no universo vocabular do aluno e da
sociedade onde ele vive, as palavras e temas centrais de sua biografia. Esta é
a etapa da descoberta do universo vocabular, em que são levantadas palavras e
temas geradores relacionados com a vida cotidiana dos alfabetizandos e do grupo
social a que eles pertencem. Essas palavras geradoras são selecionadas em
função da riqueza silábica, do valor fonético e principalmente em função do
significado social para o grupo. A descoberta desse universo vocabular pode ser
efetuada através de encontros informais com os moradores do lugar em que se vai
trabalhar, convivendo com eles, sentido suas preocupações e captando elementos
de sua cultura.
b) A tematização, pela qual professor
e aluno codificam e decodificam esses temas; ambos buscam o seu significado
social, tomando assim consciência do mundo vivido. Descobrem-se assim novos temas
geradores, relacionados com os que foram inicialmente levantados. É nesta fase
que são elaboradas as fichas para a decomposição das famílias fonéticas, dando
subsídios para a leitura e a escrita.
c) A problematização, na qual eles
buscam superar uma primeira visão mágica por uma visão crítica, partindo para a
transformação do contexto vivido. Nesta ida e vinda do concreto para o abstrato
e do abstrato para o concreto, volta-se ao concreto problematizando-o.
Descobrem-se assim limites e possibilidades existenciais concretas captadas na
primeira etapa. Evidencia-se a necessidade de uma ação concreta, cultural,
política, social, visando à superação de situações-limite, isto é, de
obstáculos ao processo de hominização. A realidade opressiva é experimentada
como um processo passível de superação. A educação para a libertação deve
desembocar na práxis transformadora.
Tema Gerador: Os
seres humanos e o planeta
Sobreviverão?
|
Estudos
da realidade (inclui atividades dos estudantes)
|
Organização do
Conhecimento
(identifica o conteúdo básico, conceitos, e temas)
|
Aplicação do
Conhecimento
(projetos e tarefas)
|
Arte-educação
|
· Artes
visuais: colagem, pintura, modelagem
· Atividades musicais
· Entendendo paisagens: naturais e construídas
|
Semana de atividades de arte moderna/ Música
folclórica como forma de questionar a realidade
|
Artes
visuais/ Música/ Poesia/ Dramatizações
|
História
|
· Questionários
· Entrevistas
· Debates
|
Indústria/ A luta entre as classes sociais/
Patrão de vida/ Poluição/ Discriminação/ Colonização/ Direitos Humanos
|
Ensaios / Projetos em Grupo
|
Idioma
(Linguagem e Artes)
|
· Folder,
avisos, etc.
· Jornais
|
Conferências/ Escrita/ Análise lingüística/
análise de campanhas de publicidade e padrão de consumo
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Projetos em grupo
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Ciências
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· Debates
· Entrevistas
· Discussões em grupo
|
Meio Ambiente/ Reciclagem/ Poluição/ Saneamento
básico/ Conservação/ O corpo Corpo humano e reprodução/ Espaço mental e
físico/ Nutrição
|
Projetos em grupo/ escritos referentes a temas
comunitários
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Matemática
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· Questionários
· Debates
|
Custo de vida/ Computação básica/ Sistemas
monetários/ Porcentagens-Frações
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Colocando em tabelas o custo de vida, a inflação,
dados sobre salários / Análise escrita
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Geografia
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· Entrevistas
· Debates
· Reportagens
· Mapas
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Grupos sociais/ Classes sociais/ Desemprego/
Violência/ Espaço Social e Físico/ Migração e explosão
da população
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Desenhando mapas/ Projetos em grupos sobre a
urbanização dos bairros
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Educação
Física
|
· Questionários
· Entrevistas
· Debates
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Conhecimento do corpo/ Tempo livre
|
Demonstração de hábitos saudáveis
|
Fonte: Maria del Pilar O’Cádiz, Pia Linquist Wong,
Carlos Alberto Torres, Education and Democracy: Paulo Freire, Social
Movements and Educational Reform in São Paulo, Westview, 1998, pp. 201-202.
Os
educadores entrevistaram pais e estudantes, catalogaram as atividades e
serviços dos bairros, visitaram centros e coletaram informações. Na coleta de
dados levaram em consideração o nível geral da educação entre as famílias dos
bairros e organizaram e aplicaram este conhecimento nas atividades da escola,
construindo, na prática, o que Paulo Freire chamava, nos primeiros documentos
da Secretaria de Educação de "Escola Pública Popular".
No
início dos anos 60 o que chamou a atenção dos educadores e dos políticos era o
fato de que o método Paulo Freire "acelerava" o processo de
alfabetização dos adultos. Paulo Freire não estava usando os mesmos métodos com
os adultos que eram usados para com as crianças. É verdade, outros já haviam
pensando nessa idéia. Porém, Paulo Freire foi o primeiro a sistematizar e
experimentar um método criado inteiramente para a educação de adultos.
As
teorias construtivistas atuais também se apoiam no significado da experiência
vivida, no saber do aluno. Portanto é preciso conhecê-lo e sistematizá-lo.
Contudo, o construtivismo freireano vai além da pesquisa e da
tematização. O construtivismo freireano mostrou não só que todos podem aprender
(Piaget), mas que todos sabem alguma coisa e que o sujeito é responsável pela
construção do conhecimento e pela ressignificação do que aprende. Aprender e
alfabetizar-se é um ato tão natural quanto comer e andar. Mas a criança, o
jovem e o adulto só aprendem quando tem um projeto de vida, onde o
conhecimento é significativo para eles. É o sujeito que aprende através de sua
própria ação transformadora sobre o mundo. É ele que constrói suas próprias
categorias de pensamento, organiza o seu mundo e transforma o mundo. "O
professor deve ensinar. É preciso fazê-lo. Só que ensinar não é transmitir
conhecimento. Para que o ato de ensinar se constitua como tal, é preciso que o
ato de aprender seja precedido do, ou concomitante ao, ato de apreender o
conteúdo ou o objeto cognoscível, com que o educando se torna produtor também
do conhecimento que lhe foi ensinado" (Paulo Freire, Professora sim,
tia não, p. 188).
A
obra de Paulo Freire é interdisciplinar e pode ser vista tomando-o como
pesquisador e cientista, ou como educador. Contudo, essas duas dimensões
implicam numa outra: Paulo Freire não as separa da política. Paulo Freire deve
ser considerado também como um político. Essa é a dimensão mais importante da
sua obra. Ele não pensa a realidade como um sociólogo que procura apenas
entendê-la. Ele busca, nas ciências, elementos para, compreendendo mais
cientificamente a realidade, poder intervir de forma mais eficaz nela. Por
isso, ele pensa a educação ao mesmo tempo como ato político, como ato
de conhecimento e como ato criador. Todo o seu pensamento tem uma
relação direta com a realidade. Essa é sua marca. Ele não se comprometeu com esquemas
burocráticos, sejam eles esquemas do poder político, sejam esquemas do
poder acadêmico. Comprometeu-se, acima de tudo, com uma realidade a ser
transformada. Paulo Freire propõe uma nova concepção da relação pedagógica.
Não se trata de conceber a educação apenas como transmissão de conteúdos por
parte do educador. Pelo contrário, trata-se de estabelecer um diálogo. Isso
significa que aquele que educa está aprendendo também. A pedagogia tradicional
também afirmava isso, só que em
Paulo Freire o educador também aprende do educando da mesma
maneira que este aprende dele. Não há ninguém que possa ser considerado
definitivamente educado ou definitivamente formado. Cada um, a seu modo, junto
com os outros, pode aprender e descobrir novas dimensões e possibilidades da
realidade na vida. A educação torna-se um processo de formação comum e
permanente. No pensamento de Paulo Freire, tanto os alunos quanto o professor
são transformados em pesquisadores críticos. Os alunos não são uma lata vazia
para ser enchida pelo professor. Mas, Paulo Freire pode ainda ser lido pelo seu
gosto pela liberdade. Essa seria uma leitura libertária. Como muitos dos
seus intérpretes afirmam, a tese central da sua obra é a tese da liberdade-libertação.
A liberdade é a categoria central de sua concepção educativa desde suas
primeiras obras. A libertação é o fim da educação. A finalidade da educação
será libertar-se da realidade opressiva e da injustiça. A educação visa à
libertação, à transformação radical da realidade, para melhorá-la, para torná-la
mais humana, para permitir que os homens e as mulheres sejam reconhecidos como
sujeitos da sua história e não como objetos. A libertação, como objetivo da
educação, situa-se no horizonte de uma visão utópica da sociedade e do
papel da educação. A educação, a formação, devem permitir uma leitura crítica
do mundo. O mundo que nos rodeia é um mundo inacabado e isso implica a denúncia
da realidade opressiva, da realidade injusta (inacabada) e, consequentemente,
de crítica transformadora, portanto, de anúncio de outra realidade. O
anúncio é necessário como um momento de uma nova realidade a ser criada. Essa
nova realidade do amanhã é a utopia do educador de hoje.
Podemos
citar várias instâncias que demonstram a coerência entre a teoria e a prática
de Paulo Freire. Para ilustrá-la daremos abaixo um exemplo: seu trabalho como
administrador público (1989-1991), à frente da Secretaria Municipal de Educação
de São Paulo (Brasil).
3. As experiências de
Paulo Freire como Secretário de Educação em São Paulo (1989-1991)
Para
os que conheciam de perto Paulo Freire, não foi surpresa a sua capacidade
administrativa. O segredo dele foi saber governar de forma democrática. Nos
quase dois anos e meio à frente da Secretaria da educação, ele conseguiu criar
uma equipe de cinco ou seis auxiliares que podiam trabalhar com muita autonomia
e podiam substituí-lo em qualquer emergência. Existia apenas uma reunião
semanal em que se discutiam as linhas gerais da política da Secretaria. Se
fosse necessário, novos rumos eram tomados. Paulo Freire defendia ardorosamente
suas opiniões, mas sabia trabalhar em equipe, muito longe do espontaneísmo de
que havia sido acusado. Ele tinha autoridade, mas exercia-a de forma
democrática. Enfrentava situações conflituosas com muita paciência. Dizia que o
trabalho de mudança na educação exigia paciência histórica porque a educação é
um processo a longo prazo.
Quais
as mudanças estruturais mais importantes introduzidas nas escolas da
rede municipal de ensino por Paulo Freire?
É
ele mesmo quem responde eu seu livro sobre a sua experiência à frente da
Secretaria (A educação na cidade, pp. 79-80): "as mudanças
estruturais mais importantes introduzidas na escola incidiram sobre a autonomia
da escola". Foram restabelecidos os conselhos de escola e os grêmios
estudantis. No entanto, continua Paulo Freire, "o avanço maior ao
nível da autonomia da escola foi o de permitir no seio da escola a gestação de
projetos pedagógicos próprios que com apoio da administração pudessem acelerar
a mudança da escola".
Para
ilustrar esse processo de mudança vou apresentar três exemplos: o programa de formação
permanente, o programa de alfabetização de jovens e adultos e a
prática da interdisciplinaridade.
1º O programa de formação permanente do
professor.
Desde
o início da administração, Paulo Freire insistia que estava profundamente
empenhado na questão da formação permanente dos educadores. Seu programa de
formação do magistério foi orientado pelos seguintes princípios (A
educação na cidade, p. 80):
a) o educador é o sujeito da sua prática, cumprindo
a ele criá-la e recriá-la através da reflexão sobre o seu cotidiano.
b) a formação do educador deve ser permanente e
sistematizada, porque a prática se faz e refaz.
c) a prática pedagógica requer a compreensão da
própria gênese do conhecimento, ou seja, de como se dá o processo de conhecer.
d) o programa de formação dos educadores é condição
para o processo de reorientação curricular da escola.
Esse programa de formação dos educadores teve como eixos
básicos:
a) a fisionomia da escola que se quer, enquanto
horizonte da proposta pedagógica;
b) a necessidade de suprir elementos de formação
básica aos educadores nas diferentes áreas do conhecimento humano;
c) a apropriação, pelos educadores, dos avanços
científicos do conhecimento humano que possam contribuir para a qualidade da
escola que se quer.
Com
esse programa, Paulo Freire queria formar professores para uma nova postura
pedagógica, considerando sobretudo a tradição autoritária brasileira. O
Brasil nasceu autoritário. Já tem quase 500 anos de tradição autoritária. Não
se pode esperar que em poucos anos isso seja superado. Por isso, Paulo Freire
pôs à prova a sua conhecida paciência pedagógica, com decisão política,
competência técnica, amorosidade e sobretudo com o exercício da democracia.
Acabou tendo êxito nessa sua tarefa. A formação do educador ultrapassa,
transcende, os cursos explicativos teóricos em torno da democracia. A formação
se dá através da prática, da real participação. A prática da democracia vale
muito mais do que um curso sobre democracia.
2º O programa de alfabetização de jovens e
adultos.
Além
do intenso programa de formação do educador, Paulo Freire deu início a um
movimento de alfabetização em parceria com os movimentos populares, ao lado da
expansão do ensino noturno e do ensino supletivo. Antes mesmo de
assumir a Secretaria de educação, Paulo Freire tinha a intenção de sugerir à
nova Prefeita um projeto de alfabetização. Convidado, propôs imediatamente um
projeto que se chamaria MOVA-SP (Movimento de Alfabetização da Cidade de
São Paulo), inicialmente sob a coordenação de Pedro Pontual, estruturado em
estreita colaboração com os Movimentos sociais e populares da capital que
criaram, para isso, o "Fórum dos movimentos populares de alfabetização de
adultos da cidade de São Paulo" (Moacir Gadotti e José E. Romão (orgs), Educação
de jovens e adultos: teoria, prática e proposta, pp. 85-90).
A
Secretaria de Educação, através de convênios com as entidades
integrantes deste Fórum, oferecia os recursos financeiros e técnicos. Cabia ao
Fórum, junto com a Secretaria, definir os critérios para celebração de
convênios nos quais as entidades conveniadas se responsabilizavam pela criação
dos núcleos de alfabetização, locação de salas, material didático e pagamento
aos alfabetizadores e supervisores.
Esse
projeto, iniciado efetivamente em janeiro de 1990, teve grande repercussão
tanto na cidade de São Paulo como em outros Estados , pela proposta de fortalecimento
dos movimentos populares. Foi um dos raros exemplos de parceria entre a
Sociedade Civil e o Estado. É evidente que nessas circunstâncias a relação
não é sempre harmoniosa. Ela é perpassada por tensões. Mas essa é a condição
necessária para um trabalho partidário entre o Estado e os movimentos
populares.
O
MOVA-SP não impôs uma única orientação metodológica ou, como se costuma dizer,
o "Método Paulo Freire". Procurou-se manter o pluralismo, só
não se aceitando métodos pedagógicos anti-científicos e filosóficos
autoritários ou racistas. Mesmo sem impor nenhuma metodologia, foram
sustentados os princípios político-pedagógicos da teoria educacional de Paulo
Freire, sintetizados numa concepção libertadora de educação,
evidenciando o papel da educação na construção de um novo projeto histórico, a
teoria do conhecimento que parte da prática concreta na construção do saber, o
educando como sujeito do conhecimento e a compreensão da alfabetização não
apenas como um processo lógico, intelectual, mas também profundamente afetivo e
social.
Para
que um movimento de alfabetização se constitua num esforço coletivo, é
necessário que a experiência seja a fonte primordial do conhecimento. Do
contrário, ela se reduz apenas a um conhecimento intelectual que não leva à
formação crítica da consciência e nem ao fortalecimento do poder popular, isto
é, não leva à criação e ao desenvolvimento das organizações populares.
Apesar
da descontinuidade administrativa, característica de quase todas as
administrações públicas, no Brasil, o Programa MOVA-SP foi avaliado
positivamente pelos seus organizadores, bem como por estudos realizados por
pesquisadores e observadores estrangeiros. Ele serviu de referência para outras
experiências e se constituiu num processo muito significativo de formação para
todos os que o promoveram. A avaliação realizada mostrou que ele trouxe ganhos
relevantes para a formação dos educadores e, sobretudo, para os educandos.
Mesmo extinto pela nova administração (1993), o MOVA continuou em outras
municipalidades e espaços de formação, Universidades (PUC-SP), sindicatos (CUT)
e Oganizações Não-Governamentais como o Instituto Paulo Freire.
O
MOVA-SP fez parte de uma estratégia de ação cultural voltada para o resgate
da cidadania: formar governantes, formar pessoas com maior capacidade de
autonomia intelectual, multiplicadores de uma ação social libertadora. O
MOVA-SP estava contribuindo com esse objetivo ao fortalecer os movimentos
sociais populares e estabelecer novas alianças entre Sociedade Civil e Estado.
A
importância dos Movimentos Populares e Sociais no provimento de programas de
alfabetização dos países "em desenvolvimento" é reconhecida por
muitas razões, principalmente porque são agências de forte impacto na
comunidade. Os movimentos populares conduzem muitas atividades que envolvem a
alfabetização de adultos no Brasil.
Tipos de Movimentos
Populares no MOVA e Evolução em termos de Classes, Estudantes, e Movimentos
Populares
Tipo de Associação
|
Número
|
Porcentagem
|
Comunidade ou Associação
de Bairros
|
30
|
40
|
Grupos de Educação/ Cultura
|
13
|
14
|
Grupos de Mulheres, Mães, Mulheres Voluntárias
|
12
|
16
|
Grupos Religiosos
|
11
|
15
|
Grupos de Trabalhadores
|
6
|
8
|
Grupos de Direitos Humanos
|
2
|
3
|
Associações Esportivas
|
1
|
1
|
Total
|
74
|
100
|
Evolução do MOVA em
termos de Classes, Estudantes, e Movimentos Populares
Tempo
|
Classes
|
Estudantes
|
Movimentos Populares
|
Fevereiro de 1991
|
451
|
9.513
|
39
|
Maio de 1991
|
557
|
11.853
|
45
|
Dezembro de 1991
|
868
|
17.766
|
68
|
Maio de 1992
|
920
|
20.114
|
69
|
Junho de 1992
|
-
|
21.000
|
-
|
Fonte: Nelly P. Stromquist, Literacy for
Citizenship: Gender and Grassroots Dynamics in Brazil, Albany, SUNY Press,
1997, pp. 173, 214
As tabelas acima demonstram o sucesso do Programa
MOVA. Ele demandou um crescimento permanente em termos de número de classes e
de Movimentos envolvidos. Em três anos atendemos cerca de 80 mil
alfabetizandos.
3º A prática da interdisciplinaridade.
A
enormidade da obra de Paulo Freire e o seu trânsito por várias áreas do
conhecimento e da prática nos levam a um outro tema central de sua obra: a interdisciplinaridade.
Em 1987 e 1988, Paulo Freire desenvolve o conceito de interdisciplinaridade
dialogando com educadores de várias áreas na Universidade de Campinas,
empenhados num projeto de educação popular informal. O conceito de
interdisciplinaridade surge da análise da prática concreta e da experiência
vivida do grupo de reflexão. Essas reflexões foram reunidas por Débora Mazza e
Adriano Nogueira e publicada com o título Na escola que fazemos (1988).
No ano seguinte, já como Secretário Municipal de São Paulo, Paulo Freire deu
início a uma grande reorientação curricular que foi chamada de projeto da
interdisciplinaridade. A interdisciplinaridade não é apenas um método
pedagógico ou uma atitude do professor. É uma exigência da
própria natureza do ato pedagógico.
A
ação pedagógica através da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade
aponta para a construção de uma escola participativa e decisiva na formação do
sujeito social. O educador, sujeito de sua ação pedagógica, é capaz de elaborar
programas e métodos de ensino-aprendizagem, sendo competente para inserir a sua
escola numa comunidade. O objetivo fundamental da interdisciplinaridade é experimentar
a vivência de uma realidade global que se inscreve nas experiências
cotidianas do aluno, do professor e do povo e que, na escola tradicional, é
compartimentada e fragmentada. Articular saber, conhecimento, vivência, escola,
comunidade, meio-ambiente etc., é o objetivo da interdisciplinaridade que se
traduz na prática por um trabalho coletivo e solidário na organização do
trabalho na escola. Não há interdisciplinaridade sem descentralização do poder,
portanto, sem uma efetiva autonomia da escola.
Na
tabela abaixo podemos ver o processo que envolve cada momento (fase) no Projeto
Interdisciplinaridade e as condições necessárias e os resultados esperados com
essa abordagem metodológica.
Fases do Projeto
Intedisciplinaridade
Estudo da Realidade
|
Organização do
Conhecimento
|
Aplicação do
Conhecimento
|
Problematização
|
Seleção das áreas do conteúdo programático
|
Implementação do programa que foi organizado
|
Discussão e histórias dos estudantes, educadores,
e comunidade
|
A realidade e o conhecimento sistematizado
|
valiação e planejamento para a transformação do
estudante, educador, e comunidade
|
Visitas, Entrevistas
|
Abordagem do educador e atitude/ Requisitos
cognitivos e afetivos
|
Conhecimento: ação, apropriação, e reconstrução
|
Questionários, situações significativas, temas
geradores
|
Noções, hipóteses, pressupostos, teorias
|
Ferramentas: ambientes naturais e construídos,
jogos, revistas, livros, etc.
|
Fonte: Maria del Pilar O'Cádiz, Pia Linquist Wong,
Carlos Alberto Torres, Education and Democracy: Paulo Freire, Social
Movements and Educational Reform in São Paulo. Westview, 1998, p. 111.
Na
minha experiência de trabalhar junto com Freire por mais de duas décadas –
particularmente como seu Chefe de Gabinete na administração da Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo e especialmente coordenando o MOVA-SP –
aprendi que devido às condições históricas da centralização e autoritarismo das
instituições brasileiras, é necessário buscar a autonomia da escola em todos os
níveis. E nisso Paulo Freire estava de acordo. Autonomia não só da escola, mas
também do aluno e do professor.
Paulo
Freire deixou a Secretaria Municipal de Educação dia 27 de maio de 1991. Depois
de quase dois anos e meio, Paulo voltou à sua biblioteca e às suas atividades
acadêmicas "à maneira de quem, saindo, fica" , como afirma no epílogo
do seu livro A educação na cidade (p. 143). Na verdade, Paulo Freire
continuou uma presença ativa na Secretaria, oferecendo sua larga experiência
traduzida na prática dos projetos que a Secretaria realizou. Na sua despedida
afirmou: "mesmo sem ser mais secretário continuarei junto de vocês de
outra forma... Continuem contando comigo na construção de uma política
educacional, de uma escola com outra "cara", mais alegre, fraterna e
democrática" (A educação na cidade, p. 144).
4. Paulo Freire no
contexto das pedagogias contemporâneas
O
pensamento de Paulo Freire pode ser relacionado com o de muitos educadores
contemporâneos. Podemos encontrar grande afinidade entre Paulo Freire e o
revolucionário educador francês Célestin Freinet (1896-1966), na medida em que
ambos acreditam na capacidade de o aluno organizar sua própria aprendizagem.
Freinet deu enorme importância ao que chamou de "texto livre". Como
Paulo Freire, utilizava-se do chamado método global de alfabetização,
associando a leitura da palavra à leitura do mundo. Insistia na necessidade,
tanto da criança quanto do adulto, de ler o texto entendendo-o. Como Paulo
Freire, preocupou-se com a educação das classes populares. Seu método de
trabalho incluía a imprensa, o desenho livre, o diálogo e o contato com a
realidade do aluno.
Embora
Paulo Freire não defenda o princípio da não-diretividade na educação, como faz
o psicoterapeuta Carl Rogers (1912-1987), não resta dúvida de que existem
muitos pontos comuns nas pedagogias que eles defendem, sobretudo no que diz
respeito à liberdade de expressão individual, à crença na possibilidade
de os homens resolverem, eles próprios, seus problemas, desde que motivados
interiormente para isso. Para Rogers, assim como para Paulo Freire, a
responsabilidade da educação está no próprio estudante, possuidor das forças de
crescimento e auto-avaliação. A educação deve estar centrada nele, em vez de
centrar-se no professor ou no ensino; o aluno deve ser senhor de sua própria
aprendizagem. E a aula não é o momento em que se deve despejar
conhecimentos no aluno, nem as provas e exames são os
instrumentos que permitirão verificar se o conhecimento continua na cabeça do
aluno e se este o guarda do jeito que o professor o ensinou. A educação deve
ter uma visão do aluno como pessoa inteira, com sentimentos e emoções.
O
que tem em comum Paulo Freire com Ivan Illich (1926), o filósofo austríaco?
Nos
dois podemos encontrar a crítica da escola tradicional. Entre a burocratização
da instituição escolar atual, os dois demandaram que os educadores buscassem
seu desenvolvimento próprio e a libertação coletiva para combater a alienação
das escolas e propondo o redescobrimento da autonomia criadora. Apesar deste
pontos em comum, existem consideráveis divergências. No trabalho de Ivan
Illich, podem encontrar um pessimismo em relação à escola. Ele não acredita que
a escola tradicional tenha futuro. Por isso seria necessário "desescolarizar"
a sociedade. Em Paulo Freire encontramos otimismo. A escola pode mudar e deve
ser mudada pois joga um papel importante na transformação social. O que une
Illich e Freire é sua crença profunda em revolucionar os conteúdos e a
pedagogia da escola atual. Os dois acreditam que essa mudança é ao mesmo tempo
política e pedagógica e que a crítica da escola é parte de uma crítica mais
ampla à civilização contemporânea.
Desde
a tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação da
Universidade de Pernambuco, Paulo Freire faz referências a John Dewey
(1859-1952), citando-lhe a obra Democracia e educação, publicada no
Brasil em 1936. Essa referência não podia deixar de existir, pois Paulo Freire
era um grande admirador da pedagogia de Anísio Teixeira (1900-1971), de quem se
considera discípulo e com o qual concordava na denúncia do excessivo
centralismo, ligado ao autoritarismo e ao elitismo da educação brasileira. Foi
Anísio Teixeira quem introduziu o pensamento de Dewey no Brasil.
Como
John Dewey (1859-1952), o conhecido filósofo e educador norte-americano, Paulo
Freire insiste no conhecimento da vida e da comunidade local. Porém podemos
encontrar uma diferença na noção de cultura. Em Dewey, ela é simplificada, pois
não envolve a problemática social, racial e étnica, ao passo que, em Paulo
Freire, ela adquire uma conotação antropológica, já que a ação educativa é
sempre situada na cultura do aluno. O que a pedagogia de Paulo Freire aproveita
do pensamento de John Dewey é a idéia de "aprender fazendo", o
trabalho cooperativo, a relação entre teoria e prática, o método de iniciar o
trabalho educativo pela fala (linguagem) dos alunos.
Também
podemos evidenciar a semelhança de pontos de vista de Paulo Freire e Lev
Vygotsky (1896-1934), o pedagogo russo e o psicólogo suíço Jean Piaget
(1896-1980).
A
teoria da escrita de Vygotsky contém uma descrição dos processos internos que
caracterizam a produção das palavras escritas. Diz ele que a fonte mental de
recursos da escrita é o "discurso interno", que evolui a partir do
discurso egocentrado da criança. Vygotsky reconhece que, em todos os discursos
humanos, o indivíduo muda e desenvolve o discurso interno com a idade e a
experiência. A linguagem é tão extraordinariamente importante na sofisticação
cognitiva crescente das crianças quanto no aumento de sua afetividade social,
pois a linguagem é o meio pelo qual a criança e os adultos sistematizam suas
percepções.
Embora
Vygotsky e Freire tenham vivido em tempos e hemisférios diferentes, a abordagem
de ambos enfatiza aspectos fundamentais, relativos a mudanças sociais e
educacionais que se interpenetram. Enquanto Vygotsky enfoca a dinâmica
psicológica, Freire se concentra no desenvolvimento de estratégias pedagógicas
e na análise da linguagem.
Para
Piaget o papel da ação é fundamental para o desenvolvimento da criança porque é
a característica essencial do pensamento lógico para ser operativo. Piaget
sustenta que aprendemos somente quando queremos e somente quanto o que
aprendemos é significativo para nós mesmos. Paulo Freire estava de acordo com
essa tese de Piaget e insistia: necessitamos desenvolver a
"curiosidade" do aprendiz para poder desenvolver o ato de
aprendizagem. Quando separamos a produção do conhecimento do descobrimento do
conhecimento que já existe, as escolas podem ser facilmente transformadas em
lojas de venda de conhecimento.
Paulo
Freire foi imfluenciado de diferentes maneiras: seu pensamento humanista foi
inspirado no personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950) e pelo
existencialismo (Martin Buber), pela fenomenologia (Georg Hegel) e pelo
Marxismo (Antonio Gramsci e Jürgen Habermas). Em todos casos, não se pode dizer
que Paulo Freire tenha sido eclético. Ele integra os elementos fundamentais
destas doutrinas filosóficas sem repeti-las de uma forma mecânica ou
preconceituosa.
A
pedagogia de Paulo Freire adquiriu sentido universal a partir da relação entre
oprimido e opressor, demonstrando que isso ocorre em todo o mundo. Suas
teorias, por outro lado, têm sido enriquecidas por muitas e variadas
experiências em muitos países. Além dos países em que o próprio Paulo Freire
trabalhou diretamente, muitos outros tem "aplicado" suas idéias e seu
método com resultados muito positivos.
Entre
as intuições originais do paradigma da educação popular que ele
inspirou, podemos destacar:
- a educação como produção e não meramente como
transmissão do conhecimento;
- a defesa de uma educação para a liberdade,
pré-condição da vida democrática;
- a recusa do autoritarismo, da manipulação, da
ideologização que surge também ao estabelecer hierarquias rígidas entre o
professor que sabe (e por isso ensina) e o aluno que tem que aprender (e
por isso estuda);
- a defesa da educação como um ato de diálogo no
descobrimento rigoroso, porém, por sua vez, imaginativo, da razão de ser
das coisas;
- a noção de uma ciência aberta às necessidades
populares e
- um planejamento comunitário e participativo.
A
força da obra de Paulo Freire não está na sua teoria do conhecimento mas em ter
insistido na idéia de que é possível, urgente e necessário mudar as coisas. Ele
não só convenceu tantas pessoas em tantas partes do mundo pelas suas teorias e
práticas, mas também porque despertava nelas a capacidade de sonhar com uma
realidade mais humana, menos feia e mais justa. Ele foi uma espécie de guardião
da utopia. Deixou-a como legado. E isso não serve apenas para os países pobres,
mas também para os países ricos.
5. Raízes, asas e
sonhos
As
idéias desafiantes de Paulo Freire e suas repercussão mundial não agradaram a
todos. Apesar de sua enorme capacidade de diálogo e sua humildade, ele foi
criticado, particularmente pelos conservadores. Paulo Freire não é apenas o
educador mais lido hoje no Brasil. Ele tem outra fama: a de ter sido o educador
que recebeu o maior número de rótulos. Ele foi chamado de "nacional
desenvolvimentista", "escolanovista popular",
"indutivista", "esponteneista",
"não-diretivista", "neo-anarquista católico" etc.
- Como Paulo Freire reage diante das críticas à
sua pessoa ou à sua obra?
Os
ataques à sua pessoa são raríssimos porque suas idéias podem gerar polêmica,
mas não a sua pessoa. Sua personalidade era transparente. Não há lugar para a
hipocrisia. Não respondia a críticas pessoais. Também não polemizava com os
críticos à sua obra. Paulo Freire acreditava que o humor era uma arma
pedagógica progressista, mas a polêmica não. O humor é construtivo e a
polêmica, muitas vezes, destrutiva. Por isso, não polemizou com nenhum de seus
críticos.
Considerava
as críticas positivamente e procurava aprender com elas. Quando respondia, indiretamente,
em seus livros - e isso ele o fez sistematicamente - ele procurava, antes de
mais nada, contextualizar as suas obras, mostrando que ele
era filho do seu tempo. Nesse sentido, podemos dizer que existe uma evolução
no seu pensamento em que ia vai superando certas "ingenuidades"
cometidas anteriormente, como ele mesmo afirma na Pedagogia da esperança
(p. 67).
Mas
existem também críticas que provêem de leituras muito diferentes e até
contraditórias da própria obra de Paulo Freire. Leituras legítimas e sérias.
Contudo, neste caso, Paulo Freire tinha o direito de discordar dessas leituras
e não se reconhecer nelas.
Certos
críticos conservadores afirmam que ele não tem uma teoria do
conhecimento porque não estuda as relações entre o sujeito do conhecimento
e o objeto. Ele se interessaria apenas pelo produto. Isso não é verdade: antes
de mais nada, o seu pensamento funda-se numa explícita teoria antropológica do
conhecimento. Outros o acusam de autoritarismo afirmando que o seu
método supõe a transformação da realidade e nem todos desejam transformá-la.
Portanto, seria um método não científico (porque não aplicável universalmente).
Seu método seria autoritário na medida em que ele obriga a todos a participarem
na transformação. É claro que essa crítica ignora que Paulo Freire não aceita a
idéia de uma teoria pura - para ele uma ilusão - mas numa teoria
crítica enraizada numa filosofia social e política. Ele rejeita a idéia da
neutralidade científica - como recusa o academicismo - e argumenta que os
conservadores, sobre a capa da neutralidade política de uma teoria pura
escondem a sua ideologia conservadora.
Qual
é o legado que Paulo Freire nos está deixando?
Em
primeiro lugar, ele nos deixou sua vida, uma rica biografia. Paulo nos
encantou com a sua ternura, sua doçura, seu carisma, sua coerência, seu
compromisso, sua seriedade. Suas palavras e suas ações foram palavras e ações
de luta por um mundo "menos feio, menos malvado, menos desumano". Ao
lado do amor e da esperança, ele também nos deixou um legado de indignação
diante da injustiça. Diante dela, dizia que não podemos "adocicar"
nossas palavras.
Além
do testemunho de uma vida de compromisso com a causa dos oprimidos, ele nos
deixou uma imensa obra, estampada em muitas edições de seus livros, em
artigos e vídeos espalhados pelo mundo. Nela se encontra uma pedagogia
revolucionária. A pedagogia conservadora humilha o aluno. A pedagogia
freireana, a "pedagogia do diálogo", deu dignidade a ele,
respeitando o educando e colocando o professor ao lado dele - com a tarefa de
orientar e dirigir o processo educativo - como um ser que também busca. Como o
aluno, o professor é também um aprendiz. Esse é o legado de Freire.
No
desenvolvimento da sua teoria da educação, Paulo Freire conseguiu, de um lado,
desmistificar os sonhos do pedagogismo dos anos 60, que, pelo menos na
América Latina, sustentava a tese de que a escola tudo podia, e, de outro lado,
conseguiu superar o pessimismo dos anos 70, para o qual a escola era
meramente reprodutora do status quo. Fazendo isso - superando o
pedagogismo ingênuo e o pessimismo negativista - conseguiu manter-se fiel à
utopia, sonhando sonhos possíveis. Fazer hoje o possível de hoje para amanhã
fazer o impossível de hoje.
Paulo
Freire foi um ser humano completo. Doce guerreiro das palavras, visionário,
acreditava na importância da escola, do saber, da palavra, da cultura, do
educador. Confessou certa vez que "não tinha vergonha de ser
professor". Como um plantador do futuro, ele sempre será lembrado porque
nos deixou raízes, asas e sonhos como herança. Como criador de
espíritos, a melhor maneira de homenageá-lo é reinventá-lo. Não copiá-lo. É
levar adiante o esforço de uma educação com uma nova qualidade para todos. Essa
nova qualidade não será medida pela quantidade absorvida de conteúdos
técnico-científicos apenas, mas, pela produção de um tipo novo de conhecimento,
"molhado de existência" e de história, um conhecimento que deve ser,
acima de tudo, uma ferramenta de mudança das condições de vida daqueles que não
têm acesso à existência plena. Ele nos deixou teorias e exemplos que nos
podem levar muito além de onde estamos hoje. Como disse um professor logo que
ouviu falar de seu falecimento "ele nos deixou mais pobres porque partiu,
mas estamos mais ricos porque ele existiu".
Dar
continuidade a Freire, não significa tratá-lo como um "Totem", ao
qual não se pode tocar mas se deve apenas adorar; não significa também tratá-lo
como um "gurú", que deve ser seguido por discípulos, sem
questioná-lo. Nada menos freireano do que esta idéia. Paulo Freire foi,
sobretudo, um criador de espíritos. Por isso deve ser tratado como um grande
educador popular. Adorar Freire como um totem, significa destruir Freire como
educador. Por isso não devemos repetir Freire, mas "reinventá-lo",
como ele mesmo dizia. Para esta tarefa, não designou esta ou aquela pessoa ou
instituição. Esta tarefa ele deixou a todos nós, tão claramente expressa já no Pedagogia
do oprimido, quando o dedicou "aos esfarrapados do mundo, e aos
que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas,
sobretudo, com eles lutam".
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