LITERATURA O MITO E O ÓDIO EM CORPO VIVO

O MITO E O ÓDIO EM CORPO VIVO
Fernando Py 



Poeta, tradutor e crítico literário, autor de "Bibliografia Comentada de Carlos Drummond de Andrade".

1. O romance Corpo vivo, de Adonias Filho (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962), compõe com Os servos da morte (1946) e Memórias de Lázaro (1952) a chamada Trilogia do cacau, na qual o escritor baiano aborda o tema da civilização cacaueira no interior do seu Estado natal. Esses três romances caracterizam-se pela preocupação em renovar a temática dos regionalistas da década de 1930, revelando, ao mesmo tempo, um cuidado técnico, linguístico e estrutural que ultrapassa em muito o mero “regionalismo”, recriando de um universo próprio em que as injunções de costumes e ambiente são apenas dados de um painel psicológico de maior alcance.
2. De todos, é Corpo vivo o que apresenta maior funcionalidade e está mais bem realizado dentro dos propósitos e limites fixados pelo autor. Os recursos técnicos e estilísticos atingem aqui um maior aprimoramento. Se em Os servos da morte ainda existe um desnível, ligeiro embora, entre as personagens e o pensamento do autor (que interfere, como ser onisciente, na narrativa e na ação), já em Memórias de Lázaro a narrativa possui mais autonomia e é mais definida, o que confere ao romance grande força conceptiva. As diversas partes do livro têm uma estrutura mais bem organizada devido à presença e realidade da personagem que narra em primeiro plano.
3. Corpo vivo, por sua vez, mesmo apresentando o recurso do narrador onisciente, além dos narradores diretos em episódios variados, forma um admirável conjunto dessas técnicas reunidas, valorizado pelo equilíbrio entre técnica e narrativa. Adonias Filho é senhor da linguagem que emprega e, mais do que nunca, acentua a preferência pelo tratamento do coloquial. Os termos regionalistas que utiliza com rigor e precisão elidem qualquer ideia de “regionalismo” (o que já lhe valeu a acusação de “falsear” a realidade). Mas o plano da obra é um, o da realidade objetiva é outro; é necessário não confundir apego à realidade com desconhecimento da língua. Em Adonias Filho o que interessa é o que diz, é a recriação do mundo selvagem da civilização cacaueira. O linguajar do povo dessa região já lhe merece atenção minguada. Sua obra, embora tenha pontos de contato com a de Guimarães Rosa, p. ex., na violentação da linguagem, dela se distancia mostrando que sua atitude, nesse terreno, é bem mais moderada que a do escritor mineiro, pois não é feita à base de pura invenção verbal mas abre caminho para experimentos técnicos e estruturais, como a de Autran Dourado, este mais radical nesse pormenor.
4. Corpo vivo é, assim, o ponto culminante desse desempenho técnico-estilístico. A forma do romance já é por si um desafio. Inicia com o monólogo interior de João Caio, tropeiro do bando de Cajango, que recorda vários episódios a partir do momento em que conheceu Padrinho Abílio e se integrou no bando. Padrinho Abílio assume então o primeiro plano, narrando o massacre da família de Cajango. Assim, os diversos planos da história se armam e se entrecruzam num tecido firme, consistente, em que um episódio solto se vai na verdade ajustando a outro e outro, resultando afinal num composto harmônico de quebra-cabeças.
5. O sentimento unânime a guiar essas criaturas, empenhadas em vingar a morte da família de Cajango, é o ódio. Ódio que foi ensinado a Cajango menino, único sobrevivente do massacre, pelo seu tio índio; ódio que é o principal leit-motivo do romance e razão quase exclusiva da existência de Cajango adulto; ódio que cede enfim ante outra paixão, gêmea e igualmente avassaladora: o amor. Quando Cajango se apaixona por Malva, o tio Inuri percebe que o programa de vingança está perdido. Desafia Cajango, lutam, e é morto. Outros abandonam Cajango: já não é o mesmo. Restam três fiéis, inclusive João Caio, cujo papel na narrativa é o do narrador quase onisciente, uma espécie de corifeu — no sentido original do termo, relativo ao personagem que dialogava com o coro na tragédia grega antiga. Essa posição de João Caio é um dos traços que ligam Corpo vivo não só à tragédia grega como também à mitologia religiosa ocidental.
6. Pois, observando a condição final de Cajango e Malva, refugiados numa serra inacessível, pensa-se de imediato na mitologia cristã, nas lendas primitivas que enfocam a salvação do homem e sua “reconquista do paraíso”. De certo modo, o refúgio de ambos funciona como um paradise regained, uma paráfrase da posição rousseauniana de integração homem-natureza. Pois tanto Cajango quanto Malva são selvagens, selvagens na medida em que pertencem àquele mundo primitivo sem qualquer traço de civilização humana, mundo que “reconquistam” como penhor de uma remissão, remissão alcançada pelo abandono do “pecado”, o ódio, o programa de vingança.
7. Mas é justamente a presença de uma civilização humana, embora tênue e primitiva, que provoca os conflitos ao longo da narrativa. É a cobiça dos fazendeiros vizinhos que dá motivo ao massacre; é a estratificação da sociedade em camadas, com a consequente injustiça social, que transforma Cajango num cangaceiro ávido de vingança, estimulado pelos sentimentos de ódio e aversão do índio Inuri. E é finalmente essa mesma sociedade intolerante e agressiva que persegue Cajango até o sopé da serra, confessando-se então, e só então, derrotada no propósito de puni-lo exemplarmente.
8. Por fim, a “situação” social do romance determina também o seu aspecto trágico maior. Cajango é um herói da tragédia grega. O plano de vingança elaborado pelo tio o transforma num “mecanismo” selvagem, cumpridor de um fado, apenas um “corpo vivo”. Formando seu grupo de seres igualmente embrutecidos (a exceção é ainda o narrador João Caio que, como vimos, tem um papel todo especial), marginais e agressivos como ele, unidos no ódio comum à sociedade que os repeliu, buscando praticar justiça pelas próprias mãos, Cajango vai cumprindo seu destino e se torna um mito.
9. Já se disse que o estilo de Adonias Filho atinge nesse romance o seu máximo depuramento. Convém acrescentar que a concisão verbal sempre foi um traço predominante de sua ficção. A ela pode-se ajuntar a incisividade das frases curtas e secas, e o lirismo que aponta no tratamento geral do texto e se destaca especialmente pela situação vivida por Malva e Cajango. Esse lirismo, embora não de todo ausente de obras anteriores, começa em Corpo vivo a ganhar substância e tornar-se imprescindível ao clima vivido pelas personagens. Em Corpo vivo, ele é extremamente funcional e serve de pendant ao ódio, mola mestra da história. O romance é uma pequena obra-prima feita de sugestões, notável na recriação de um mundo primitivo, onde as criaturas se movem impulsionadas por seus instintos violentos, mas que cedem aqui e ali a sentimentos menos rudes. 

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