Memórias de Lázaro" de Adonias Filho
RESUMO:
Memórias de Lázaro é uma obra da Literatura Brasileira escrita sobre as bases
da memória literária, permeada em sua tessitura de devaneios líricos que fazem
aflorar um certo realismo jocoso, carregado de imagens evocadas nas pequenas
histórias que vão derivando da interlocução entre os personagens ou das
próprias reminiscências advindas do conflito interior de seu narrador-mor. Rico
em recursos narrativos, Memórias de Lázaro provoca o leitor pelos seus
zig-zags, proposta modernista na qual o romance perde a linearidade e faz
aflorar no jogo das palavras se dissolvem, fazendo brotar sensações profundas,
voltadas para a recordação, para a saudade, manifestando na profusão dos
sentidos.
De acordo com alguns críticos, esta é uma história que poderia ser um documentário acerca da passagem do ser humano pela terra: nascimento, sofrimento e ressurreição.
A
história, narrada por Alexandre, seu personagem central, flui de sua memória,
enaltecendo a mata – admiração de sua infância –, condicionando essa memória
fotográfica a uma metáfora, uma ilusão que se configura dentro da narrativa:
uma visão única de mundo. Eis o nascimento.
O
sofrimento vem marcado, ao denunciar, estarrecido, as maldades, sem fim, das
pessoas que habitavam o vale: mas estas serão analisadas sempre em desvantagem
de significado humano, em relação aos cavalos selvagens. A ressurreição,
apresenta-se na ação de sair do lugar, o que acena como prenuncio de libertação
daquele povo ali enterrado, mesmo antes da morte física.
Esta era a realidade possível, de Alexandre, demarcada pelo autor, cuja obra inicia o modelo literário do viés sinistro, macabro, que ainda tomaria lugar mais acentuado na literatura.
Esta era a realidade possível, de Alexandre, demarcada pelo autor, cuja obra inicia o modelo literário do viés sinistro, macabro, que ainda tomaria lugar mais acentuado na literatura.
A
narrativa desenvolve-se em dois planos distintos que caminham, paralelamente,
ao longo de sua história, até a morte de Alexandre. No plano 1 o autor se
encarrega dos fatos tidos como presentes, demonstrados pelas pequenas
introduções aos capítulos ou partes: é um plano breve, de nuances, dentro do
tempo histórico, porém suficiente para que Alexandre, ao sair da casa de
Natanael, após o nascimento da criança deformada, seja vitimado por um ataque
de demência; ela mergulha em um ataque agônico e ferido, o que o faz com que ele
não mais reconheça a estrada do vale, tão familiar.
Doente,
ele espera pela morte, narrando, amiúde, cada um dos seus momentos vividos ali;
sabendo que a sua alucinação, representada na figura de Jerônimo, jamais o
levará de volta ao pesadelo, ao tormento. Volta-se ao lugar maravilhoso,
concebido por Abílio, o seu pai, e isto é o que vai apoderar-se da sua visão.
O
plano 2 - é o da retórica, ou seja, o plano da própria trama. Nele, os
elementos da ficção, os recursos retóricos (personagens, ação, ambiente, tempo)
obedecem a dois climas emocionais bem diversos, da bipolaridade: o da loucura e
o da lucidez.
O
autor usou de simbologia para compor o seu romance: – Nas ações que se
desenvolvem no vale, o mundo exterior é o símbolo do mundo interior, da alma de
Alexandre; – De uma forma ilógica, em um cenário fantasmagórico, pessoas,
animais e a própria natureza se movimentam. O vale é o fórum da maldade;
naquele lugar, o autor deixa os personagens agirem de maneira sórdida, como os
humanos tratam as causas humanas; a escala de valores encontra-se em perfeito
descalibre, permitindo toda sorte de inferências humanas, como roubo, estupro e
traição.
O
chocante é que o universo onde transcorrem todas aquelas alegorias malfazejas,
restringe-se ao quotidiano do Vale do Ouro. Ali, não há igrejas, não há
escolas, não há jardins e ninguém sorri.
A simbologia, além da linguagem está impregnada nos lugares como:
A simbologia, além da linguagem está impregnada nos lugares como:
Observando
a natureza física – o Vale – um lugar cercado de montanhas, que remete o leitor
a cadeias, muralhas, se configura numa prisão, embora o narrador as descreva,
como muros de proteção aos habitantes, colocando-os a salvo dos perigos
externos. Quando Adonias coloca na narrativa “nós, os seus mortos” ele está
criando a ideia de um cemitério de mortos-vivos.
Para
Erich Fromm, o raciocínio leva a entender o vale como uma obsessão, uma loucura
que isola o ser humano dos seus semelhantes. A atmosfera do lugar é de sedução,
fascinação exercida por dotes naturais ou por artifícios, por trama ou
maquinação de seu personagens.
A
estrada representa a própria vida do vale: ela é colocada dentro da narrativa
como o seu principal símbolo. Muitas vezes ela se mostra cheias de
possibilidades, aos olhos de quem ali vive, alimentando-os como sendo ela (a
estrada), o espaço de idealizações; todavia, quando ela se apresenta longe do
foco da personagem, ela é utópica.
O
vento – Na voz de Alexandre, é o Demônio vivo, pois que açoita o vale.
Crestando tudo, traz o desassossego e obriga os seus moradores a viverem
isolados do seu próprio habitat, devido ao regime de vida, obrigando-os a
viverem de janelas fechadas, uma condição arbitrária, imposta por ele – o
vento.
A água é símbolo de movimento, ciclo de vida e de paz, a sua ausência é certeza de morte, de falência do Vale do Ouro. Os poços, os córregos e ribeiros são o que possibilitam a existência das árvores gigantescas, de negras copas, prenhes de vida. Quando seus córregos secaram-se, e receberam, no lugar da água, a camada de lodo, as serpentes encontraram no lugar, a associação própria à degradação do vale. A presença do lodo e das serpentes, portanto, simbolizam as maldades latentes que ali encontraram paragem.
A água é símbolo de movimento, ciclo de vida e de paz, a sua ausência é certeza de morte, de falência do Vale do Ouro. Os poços, os córregos e ribeiros são o que possibilitam a existência das árvores gigantescas, de negras copas, prenhes de vida. Quando seus córregos secaram-se, e receberam, no lugar da água, a camada de lodo, as serpentes encontraram no lugar, a associação própria à degradação do vale. A presença do lodo e das serpentes, portanto, simbolizam as maldades latentes que ali encontraram paragem.
Trovões
e nuvens negras significavam terror, medo do desconhecido, representavam os
perigos que ameaçavam desabar sobre as desesperanças reinantes. Enquanto
pairavam acima, nos céus, aquelas nuvens tinham a eficácia de uma avaliação,
por parte dos deuses algozes, prendendo aquelas vidas, ao vale, eternamente.
“Ergue-se novamente dentro de mim, a sensibilidade antiga, uma espécie de música
sem ritmo, subjugando o vento.”
Alexandre,
o personagem principal, foi retratado pela articulista do “Estadão”, Maria S.
Brito, quando do lançamento da 2a edição de MEMORIAS DE LÁZARO, no Suplemento
Literário, de 23 de maio de 1970, como aquele que centraliza-se em uma obra,
cujo enredo “ apresenta uma história de queda, ressurreição e morte”; Costa
Lima acrescenta ao perfil da personagem, como adendo àquela concepção, ao nosso
modo de ver, a desnecessária ressurreição para a vida espiritual. No que concerne
à queda, enfocada pelo jornal paulista, a vida de um ser humano vem como ondas:
alterna-se em altas e baixas, às vezes rasteja-se pela areia e muitas vezes
explode nos ares.
Como
representante de uma legião pertinente ao vale, Alexandre luta à procura da
redenção; como as saídas se apresentam em círculos, íngremes, sem veredas,
circundantes, dificultam qualquer fuga, daquele caos. O personagem logra saída
através do braço da floresta, réstia de luz salvadora, que ludibria a segurança
do vale. Recobrado de sua loucura, ele retoma a sua infância: retorna aos 4
anos de idade, quando rasgava, encantado, a sua floresta, levado pelo braço de
Jerônimo. Para quem, no mais das vezes, viveu mergulhado em seu estado
alucinógeno, o braço da floresta simboliza os fortuitos momentos de lucidez de
Alexandre.
Entendemos
a ressurreição dessa personagem, como única, em qualquer plano; era no justo
momento de lucidez quando ele encontrava-se levitado. Lutou, como um condenado,
quando foi viver na vila de Coaraci, para manter-se a salvo dos diabinhos que o
empurravam para o lodaçal. Apesar do seu esforço, os maus-espíritos o dominavam
e o levavam de volta ao vale. Nesse seu retorno, porém, a estrada já não é a
mesma, nem sequer o vale. Alexandre quer buscar no passado, fatos, pessoas
ainda presas às sombras tenebrosas da terra, querendo vir buscá-lo, para
libertá-lo, o que só o consegue através da morte: “Ocultam-se, num corte
fulminante, o vale e o vento. Tudo se vai fechando, aos poucos, com serenidade
e imensa quietude”.
Jerônimo
– Se Alexandre é a personagem principal, Jerônimo é mais fascinante. Jamais
saiu do vale. Surgiu com Abílio, depois, abandonado por este, levou Alexandre,
menino ainda, para a solidão da sua caverna, no interior da rocha. Jerônimo
existiu ou representou apenas o lado enfermo da personalidade de Alexandre? Ele
era aquele caráter violento, que habitava a caverna, ou era somente a demência
que Alexandre herdara de Abílio. O certo é que Jerônimo transferiu para
Alexandre, claros antecedentes de loucura de Abílio, os quais permaneceram como
entraves, que o impediu de libertar-se das amarras da alienação e do crime:
“Como se o vento do vale soprasse nos meus ouvidos, e, no próprio vale eu
estivesse a andar na grande estrada, senti nos ombros, pesadas e agressivas, as
mãos de Jerônimo (...) a imagem de Jerônimo chamava-me aos berros, como um
enfeitiçado... “Nos instantes finais, quando Abílio reaparece para mostrar ao
filho a estrada longa da redenção, Alexandre vê-se preocupado, com a possível
chegada de Jerônimo, para censurá-lo. “Venha a luz, com a manhã (...) pois eu
sei que Jerônimo chegará muito mais tarde”.
O
tempo pode ser dividido sob duas formas: – cronológico ou histórico, e
psicológico ou
metafísico.
O tempo cronológico é marcado pelo ritmo do relógio; pela alternância da noite e do dia, pelo movimento das marés, pelas estações do ano, e até pelo movimento do sol. Quanto ao tempo interior, é o tempo psicológico de que falamos; é o tempo imerso no labirinto mental de cada um: cronometrado pelas sensações, ideias, pensamentos, vivências, sem idade ou razão. Tudo o quanto sentimos, ficou acumulado num espaço sem limites, quando muito, circular. Neste processo, as sensações vão-se acumulando, sem cronologia.
metafísico.
O tempo cronológico é marcado pelo ritmo do relógio; pela alternância da noite e do dia, pelo movimento das marés, pelas estações do ano, e até pelo movimento do sol. Quanto ao tempo interior, é o tempo psicológico de que falamos; é o tempo imerso no labirinto mental de cada um: cronometrado pelas sensações, ideias, pensamentos, vivências, sem idade ou razão. Tudo o quanto sentimos, ficou acumulado num espaço sem limites, quando muito, circular. Neste processo, as sensações vão-se acumulando, sem cronologia.
Onde
tem lugar a ação, Adonias Filho utiliza esse elemento perfeitamente
sincronizado; quando dispõe desse artifício, chega a esquecer as personagens, o
próprio tempo marcado pelas horas, envolvido que está no tormentoso tempo
psicológico de Alexandre: este, submerso no interior das brumas de suas
doentias lembranças. As referências ao tempo histórico só servem para marcar
mais fundo a agonia e a desesperança dos seres que vegetam naquele ambiente
povoado de fantasmas.
No ambiente/vale, inexistindo a noção de tempo histórico, não há conexão entre os elementos temporais, tampouco, interesse em se precisar tempo objetivo ou cronológico. Conta, no todo, as paixões em jogo, os conflitos e as lutas que travam seus personagens contra a solidão, os demônios e a falta de perspectivas. Nos momentos de lucidez, porém, o tempo cronológico se faz presente, por exemplo, na aldeia de Coaraci, quando Alexandre vai estar com Terto, ou quando esteve com Natanael. Esses são momentos tranquilos, apenas cortados por alucinações provocadas pelos maus tratos, cuja passagem devolve a Alexandre a fraqueza, somente experimentada, quando este se encontra no Vale do Ouro.
No ambiente/vale, inexistindo a noção de tempo histórico, não há conexão entre os elementos temporais, tampouco, interesse em se precisar tempo objetivo ou cronológico. Conta, no todo, as paixões em jogo, os conflitos e as lutas que travam seus personagens contra a solidão, os demônios e a falta de perspectivas. Nos momentos de lucidez, porém, o tempo cronológico se faz presente, por exemplo, na aldeia de Coaraci, quando Alexandre vai estar com Terto, ou quando esteve com Natanael. Esses são momentos tranquilos, apenas cortados por alucinações provocadas pelos maus tratos, cuja passagem devolve a Alexandre a fraqueza, somente experimentada, quando este se encontra no Vale do Ouro.
Tratando
o tempo dessa maneira, Adonias passa a construir os episódios em outro estilo:
de maneira mais clara, mais direta, coadunando conceito de tempo histórico, de
acordo com as ações reais dos personagens; uma prova disto é o momento em que
Alexandre, ao reencontrar-se com Terto, dorme, acorda, passa a acompanhar o
desenrolar do dia, marcando-o, pelo compasso das horas.
Ao adotar-se o tempo cronológico, o romance passa a desenvolver-se em um cenário mais concreto; sem os efeitos da natureza, abre-se espaço para o aparecimento de figuras como o governo, índios... até o coletor de impostos: “há dois ou três anos, estas terras eram do governo. Daqui para a aldeia, leva-se oito dias de viagem. Chegaremos dentro de poucas horas. Permaneci, morando naquela casa, durante muito tempo. Dois anos ou mais...” – Alexandre, recobrando-se, mostra-se capaz de apontar o tempo decorrido, desde a sua chegada àquela aldeia, algo impossível nos tempos do vale.
Mais uma vez, o autor volta a envolver-se com os temas de sua preferência: o isolamento em que vive o ser humano, uma condição cada vez mais contundente, em determinadas camadas da sociedade, além da carência de afeto, que advêm dessa solidão.
Ao adotar-se o tempo cronológico, o romance passa a desenvolver-se em um cenário mais concreto; sem os efeitos da natureza, abre-se espaço para o aparecimento de figuras como o governo, índios... até o coletor de impostos: “há dois ou três anos, estas terras eram do governo. Daqui para a aldeia, leva-se oito dias de viagem. Chegaremos dentro de poucas horas. Permaneci, morando naquela casa, durante muito tempo. Dois anos ou mais...” – Alexandre, recobrando-se, mostra-se capaz de apontar o tempo decorrido, desde a sua chegada àquela aldeia, algo impossível nos tempos do vale.
Mais uma vez, o autor volta a envolver-se com os temas de sua preferência: o isolamento em que vive o ser humano, uma condição cada vez mais contundente, em determinadas camadas da sociedade, além da carência de afeto, que advêm dessa solidão.
Inconsciente,
talvez, Adonias critica também o primarismo nos imposto, pela Coroa
Portuguesa, ao longo de séculos, desde o Descobrimento à instalação da Primeira
República. Ainda que discorra em ambientes menos densos de mistério e tragédia,
os seus personagens, sempre ricos de substância dramática, vão deixar
transparecer a necessidade de refúgio e de isolamento.
Em Memórias
de Lázaro, Adonias tenta criar, obstinadamente, as saídas para os nossos
conflitos, embora se utilize de recursos sinistros para dar vida às suas
personagens, e às tramas com que elas se veem envolvidas. Traz a desesperança,
porém busca encontrar uma forma de protegê-los, em seus espaços mágicos, locais
em que eles se refugiam. Em suma, Adonias, parece escrever certo, embora seja
por linhas tortas que ele vai encontrar o caminho para guiar o seu povo até a
Canaã idealizada.
Carlos Kahê
Carlos Kahê
Gostaria de saber o porque do título do livro ser memórias de lázaro, se o personagem principal que narra a história é alexandre ?
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirFaz uma analogia a passagem bíblica referente a Lázaro (leproso, sofrimento). Um jogo de palavras diante dos sofrimentos passados por Alexandre o personagem. O nome Alexandre é um jogo de sentidos: forte, guerreiro - contexto histórico a partir de Alexandre o grande), assim Lázaro é forte diante de sua vida tão trágica.
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