A Construção Discursiva das Personagens Femininas em As Velhas
A Construção
Discursiva das Personagens Femininas em As Velhas
Era necessário deixar um pouco de lado
os
alfinetes e os bordados que impregnavam
a
vida feminina e tentar tecer outros
rendados históricos
em busca
de certos ideais
Elizabeth Siqueira
Resumo
Este estudo apresenta uma análise sobre a questão identitária
e cultural da mulher da nação grapiúna, a partir da obra As Velhas, de Adonias Filho. Tal romance está centralizado
em quatro personagens femininas: Tari Januária, Zefa Cinco, Zonga e Lina de
Todos. Com base em MOREIRA2003; SACRAMENTO, 2004; SANTIAGO, 2000 e HALL, 1999, foram observados os aspectos da
construção discursiva destas personagens, procurando delinear o perfil de
cada uma delas. Desse modo, o estudo se propõe a contribuir para a discussão
sobre a representação do papel da mulher na implantação da lavoura cacaueira no Sul da Bahia.
Considerações iniciais
O século XVII caracterizou-se como o século da história das mulheres,
apesar de, nessa caracterização, o espaço da mulher continuar limitado. Aos
homens cabia, o espaço público e tudo que era dessa esfera, ao passo que às
mulheres era destinada a esfera do privado ou do restrito. Desse modo,
competia-lhes tudo o que dizia respeito ao doméstico, à casa, ao lar; sendo por
isso chamadas de anjos do lar. Observa-se a
predominância do discurso machista, uma vez que a mulher ocupa uma posição
subalterna em relação ao homem. Mesmo no início do
século XX, data provável em que já se esboçava um discurso feminista,
redefinindo a questão do gênero, a condição feminina continuava sendo,
predominantemente, a de rainha do lar.
O objetivo desse trabalho é
analisar aspectos da construção discursiva das personagens Tari Januária,
Zefa Cinco, Zonga e Lina de Todos, no romance As Velhas, de Adonias Filho. Tal
estudo se propõe a contribuir para a discussão sobre a representação do papel
da mulher na implantação da lavoura cacaueira no Sul da Bahia.
Formação discursiva e suas implicações com o literário
O narrador de As Velhas apresenta Tari Januária, em sua
infância e juventude, submetida a uma dominação machista, típica da cultura
daquela época, a fase de desbravamento das matas, para o plantio do cacau:
“Sozinha, morto o pai e sem a minha gente, me agarrei a Pedro Cobra. Fui
uma cachorra a segui-lo, andando ou correndo, sempre atrás dele no caminho de
volta”, “[...] ele
na frente e eu atrás como um rabo” (ADONIAS FILHO, 1979, p.13 e
20, grifos nosso)
Nessa cultura, a mulher sai do domínio do pai, para se submeter ao
domínio de outro homem - o marido-,
[...] O destino da mulher era o casamento e a maternidade;
atribuições, ou melhor, funções que em nada mudavam a condição feminina, uma
vez que a mulher continuava tutelada pelo marido e mantida como uma “menor”,
“uma marginalizada” diante do poder constituído. (MOREIRA,2003, p.52)
Entretanto, ao longo do tempo, sua relação com o marido vai se
tornando mais igualitária e menos violenta:
Me lembro da labuta dele, Pedro Cobra, para ensinar as coisas dos
brancos. Noite com a fogueira queimando lá
fora e aqui dentro o fogo[...] me
ensinou a comer sal, usar vestido, falar como ele, atirar de rifle e não
mais me pintar com o vermelho do urucum e o preto de jenipapo”. (ADONIAS FILHO, 1970, p.20,
grifos nosso)
Nessa fase intermediária, apesar de receber do marido uma atenção
maior, numa relação de ensino-aprendizagem, ela ocupa o papel subalterno de
aluna, enquanto Pedro Cobra é o professor. A contribuição da cultura indígena
na identidade regional “é silenciada”, uma vez que Tari Januária assimila a
cultura européia, a cultura do colonizador: “comer sal, usar vestido, falar
como ele, atirar de rifle”, ao mesmo tempo em que nega sua própria cultura:
“não mais me pintar com o vermelho do urucum e o preto de jenipapo”. Toda a
contribuição indígena à cultura grapiúna não é levada em conta pelo narrador e
através da voz de Tari Januária: “me ensinou a comer sal, usar vestido, falar
como ele, atirar de rifle e não mais me pintar com o vermelho do urucum e o
preto de jenipapo”, este lugar, ou melhor, este não-lugar, ocupado pela cultura indígena se faz
presente.
(...) o processo colonial intentava promover o esquecimento das referências locais e no vazio
restante instaurar a lembrança,
não do passado do colonizado, antes os feitos do
colonizador, tal como ocorre com Iracema, que nega sua cultura, seus
antepassados, pelo fato de ser depositária do segredo da jurema. (SACRAMENTO,
2004, p. 113)
Dessa forma, o narrador de As Velhas promove o esquecimento das referências
indígenas regionais, ao mesmo tempo, em que instaura a lembrança do
desbravador, que se tornará, mais tarde, o coronel, da cultura grapiúna.
Observa-se, portanto, uma continuidade no discurso identitário regional, entre
os autores Adonias e Jorge Amado. O primeiro destaca a figura do desbravador,
com seu rifle, e o segundo retoma essa mesma figura, já sob a forma do coronel do cacau, à frente dos jagunços
armados.
A personagem
Tari Januária, depois de uma adolescência violentada e de uma fase em que é
tratada como subalterna, finalmente, na velhice, adquire um status de mulher independente, dura,
autoritária, dando ordens ao filho homem: “– Vá, Tonho Beré, calcule o
terreno. Eu quero os ossos!” (op.
cit. p. 5). Ocupando o
lugar do marido morto, ela passa a desempenhar o papel de mulher e de homem,
numa posição de matriarca da família. Assim, a
construção discursiva da índia Tari Januária se articula em torno de três
momentos: adolescente violentada, aluna subalterna e matriarca autoritária.
Ao contrário, a personagem Zefa Cinco é apresentada pelo narrador,
numa visão feminista de igualdade de direitos e deveres entre homem e
mulher: “se Deus fez, o diabo juntou Chico Paturi e Zefa Cinco. Unha
e carne de tão agarrados, duros na labuta, fizeram um pouco de tudo” (Idem, p. 49).
A relação de Zefa Cinco com o marido é apresentada sem qualquer
marca de dominação do homem: “Unha e carne de tão agarrados”. O trabalho na
roça e o cuidado com os animais domésticos eram compartilhados pelo casal:
“(...) duros na labuta, fizeram um pouco de tudo”. O casamento para ela não
significou passar do domínio do pai para o do marido, mas foi uma simples troca: “Era ainda muito moça,
pois acabara de fazer dezoito anos quando trocou pai e mãe por um homem[...]”
(Idem, p.50).
A relação feminista de igualdade com o homem, marca Zefa Cinco desde o tempo em que vivia com o pai:
Zefa não perdia tiro. Aprendera a tirar com o pai firme o olhar
nos jagunços, a pontaria infalível. Dois já atingira na cabeça quando ouviu o
grito de Quintino. Voltou-se e viu que o menino gemia, estrebuchando, numa poça
de sangue. Quintino, o menino! Agonizava, balas no peito, sofria muito. Ela
cortou aquela dor atirando no coração do menino, aquele Quintino, atirando com
o olhar seco e tudo em menos de um segundo. (Idem, p.47)
Em vez da dominação dos homens, Zefa Cinco torna-se quase um
deles: “não perdia tiro”, “pontaria infalível”, “Ela cortou aquela dor atirando
no coração do menino”. A violência masculina, no entanto, não extingue a
ternura e o amor de mãe: “Tiveram filhos, dois meninos e, anos depois, uma
menina.” (Idem, p. 50). Mas a vingança pela morte dos filhos faz
ressurgir nela toda a violência selvagem dos homens desbravadores: “Zefa Cinco,
com as próprias mãos, retalhou Pedro Cobra até a morte. Fez com ele o que as
onças fizeram com os filhos dela” (Idem, p. 53). Tem-se, portanto, uma
personagem feminina, que
representa a não-linearidade, a quebra de paradigma e preceitos, porque
reivindica, para si, a mudança e
vivencia a transição de um estado de limitações para abrangência de
possibilidades
Zonga
é uma personagem feminina e negra, talvez por essa condição, esteja próxima da
submissão ao homem. O casamento deu-se mais por circunstância do que por
escolha amorosa: “Coé nasceu comigo e, todos os dias juntos teria mesmo que
acabar sendo a mulher dele” (Idem,
p. 87). Morto o marido, chega a sentir algo “diferente” por outro homem, mas
apenas segue-lhe passiva:
Me levou mato adentro, fez uma fogueira- ‘a nossa
fogueira’- ele disse- e nos deitamos na terra que a relva cobria como uma pele
de carneiro curtido. Não sei ainda hoje se o calor vinha das chamas ou do corpo
dele. Lembro que, depois de acariciar meu rosto com as mãos e me beijou a boca,
me lembro que falou como se fosse uma criança [...] Idem, p. 88)
Mesmo
depois de velha, quando algumas mulheres alcançam maior independência e
autonomia, Zonga continua paciente e bondosa, traços que podem disfarçar a
submissão dócil feminina: “Ninguém mais tem paciência com as pessoas, devoção
pelos santos e bondade com os bichos que Zonga [...] A negra alta de quase dois
metros, velha de oitenta anos, magra de mostrar o esqueleto, sempre com a calma
no rosto e a voz macia, [...], não
ordena, pede ” (Idem,
p. 67).
Zonga é, portanto, das personagens
femininas de As Velhas, a
mais submissa à cultura machista da época do desbravamento da região cacaueira.
Os sonhos, as ambições, os projetos de vida pessoal fermentavam
dentro da mulher, no entanto, não podiam ir além do seu destino de fêmea. A
atuação fora do lar, da casa era desvalorizada, ao máximo, era revalorizada a
sua feminilidade e, é claro, a sua maternidade, como se participar da
construção da sociedade fosse algo incompatível com sua condição de mulher.
(BADINTER, 1985, p. 32)
Até a lembrança do único homem que reparara assume a forma de um sonho distante,
além do que considera ser seu próprio destino.
Lina de Todos, por outro lado, aceita a condição inferior feminina
para, num segundo momento, tirar vantagem dessa situação, fazendo a dominação
machista funcionar contra os próprios homens. No momento em que ela se coloca
contrária à atitude do marido que a aposta em um jogo: “O Raposa já não
tinha o que apostar. Foi então que, querendo recuperar o perdido, exclamou com
os olhos fora da cara: - Jogo minha mulher!” (Idem, p.101).
Lina passa a se
comportar como se fosse um homem; revertendo posições de mando, distanciadas,
portanto, das relações estabelecidas naquela sociedade agrária. “-Então sou mula para você servir de aposta? – a
cólera a dominava, sem dúvida, mas foi sem perder a calma que disse (Idem, p.102).
A princípio, fica a recusa ao discurso machista, levado às últimas consequências. Ela,
no entanto, submete-se à dominação, fazendo com que ela funcione a seu
favor:
Os
homens que ali estavam conheceram Lina de Todos naquele minuto e sua fama começou
naquela tarde[...]
Ele
me pôs nos dados, o safado!
E vendo os homens excitados em frente, cada um dando o que pedisse
para apertá-la nos braços, soube que podia usar eles como quisesse. Buscou
esconder a raiva e, abaixando-se um pouco
para mostrar os seios, forçou o riso que alegrou o semblante.[...].E foi a
apontar o Raposa que disse:
- Já não sou mais dele porque me jogou nos dados. Não serei apenas
de Zebeleu!
-
Serei de todos! – exclamou, gritando, a ordenar - Matem o Raposa, agora, com as
mãos ou a achado, que serei de todos! “(Idem p.102)
O
modo como se submete ao machismo e dele tira vantagens encontra-se na
citação abaixo:
Era de qualquer um, ou de todos, o corpo trocava por serviços na
terra que possua. Cada plantio novo de cacau teve suor de homem como adubo.
Vivia
com um homem o tempo certo de pegar barriga. [...]
Não
se deve ter apego a homem nenhum. Apego somente aos filhos.
- Não quis mais donos- ela disse, os olhinhos quase fechados parecia
cochilar- o homem a quem dei o corpo e a alma, o Raposa, acabou me apostando no
jogo (Idem, p.115)
O fato de não querer mais ligar-se apenas a um homem não é um
protesto contra a condição feminina, mas é exatamente sua aceitação para dela
beneficiar-se.
Considerações finais
Desde os tempos mais remotos, o homem sempre foi aquele que reinou
com hegemonia em seu lar, em seu grupo social e até mesmo na sociedade da qual
fez parte. O seu discurso machista sempre foi levado a sério, suas ordens e
leis obedecidas. Entretanto, é a partir do século XX que a relação de poder
homem versus mulher passa a ser
descaracterizada, ou seja, a mulher não aceita está na posição de um ser submisso. Nesse século o
discurso da mulher torna-se mais heterogêneo,
ela não aceita mais a condição de ser apenas a rainha do lar. A mulher deseja fazer
parte do meio social em que habita, de expor suas ideias, suas opiniões e até
ter uma profissão e seu discurso legitimado.
Mas, apesar da predominância desse
discurso machista, as personagens femininas de As velhas ganham em suas reivindicações certa
heterogeneidade. O discurso da índia Tari Januária perpassa por três momentos
distintos: adolescente violentada, mulher subalterna e matriarca autoritária;
em Zefa Cinco há uma relação igualitária de poder, não apresentado nenhuma
marca de dominação; Zonga se caracterizou a personagem mais submissa à cultura
machista e, por fim Lina de Todos que se submete à dominação para dela tirar
proveito.
Comentários
Postar um comentário