INDAGAÇÕES SOBRE O CURRÍCULO

Diversidade e Currículo


A diversidade é muito mais do que o conjunto das diferenças. Ao falarmos sobre a diversidade (biológica e cultural) não podemos desconsiderar a construção das identidades, o contexto das desigualdades e das lutas sociais.
A diversidade indaga o currículo, a escola, as suas lógicas, a sua organização espacial e temporal. As indagações aqui apresentadas e discutidas não são produtos de uma discussão interna à escola. São frutos da inter-relação entre escola, sociedade e cultura e, mais precisamente, da relação entre escola e movimentos sociais. Assumir a diversidade é posicionar-se contra as diversas formas de dominação, exclusão e discriminação. É entender a educação como um direito social e o respeito à diversidade no interior de um campo político.
Várias iniciativas significativas vêm sendo realizadas, frutos de práticas educativas transgressoras realizadas pelos docentes em movimento, pelos profissionais de várias Secretarias Estaduais e Municipais de educação e por gestores (as) das escolas que entendem que o direito à educação será realmente pleno à medida que também seja assegurado aos sujeitos que participam desse processo o direito à diferença.

Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
Resumo: Cristiane Fernandes dos Santos



DIVERSIDADE E CURRÍCULO
Nilma Lino Gomes
Que indagações o trato pedagógico da diversidade traz para o currículo?
Como a questão da diversidade tem sido pensada nos diferentes espaços sociais, principalmente, nos movimentos sociais? Como podemos lidar pedagogicamente com a diversidade? Esses e outros questionamentos estão colocados, hoje, pelos educadores e educadoras nas escolas e nos encontros da categoria docente.
Ao realizarmos essa discussão, a nossa primeira tarefa poderá ser o questionamento sobre a presença ou não dessas indagações na nossa prática docente, nos projetos pedagógicos e nas propostas educacionais. Será que existe sensibilidade para a diversidade na educação infantil, especial, na EJA, no ensino fundamental, médio e profissional? Seria interessante diagnosticar se a diversidade é apenas uma preocupação de um grupo de professores (as), de alguns coletivos de profissionais no interior das escolas e secretarias de educação ou se já alcançou um lugar de destaque nas preocupações pedagógicas e nos currículos. Ao analisarmos o cotidiano da escola, qual é o lugar ocupado pela diversidade? Ela figura como tema que transversaliza o currículo? Faz parte do núcleo comum? Ou encontra espaço somente na parte diversificada?
Do ponto de vista cultural, a diversidade pode ser entendida como a construção histórica, cultural e social das diferenças. A construção das
diferenças ultrapassa as características biológicas, observáveis a olho nu. As diferenças são também construídas pelos sujeitos sociais ao longo do processo histórico e cultural, nos processos de adaptação do homem e da mulher ao meio social e no contexto das relações de poder. Sendo assim, mesmo os aspectos tipicamente observáveis, que aprendemos a ver como diferentes desde o nosso nascimento, só passaram a ser percebidos dessa forma, porque nós, seres humanos e sujeitos sociais, no contexto da cultura, assim os nomeamos e identificamos.
Mapear o trato que já é dado à diversidade pode ser um ponto de partida para novos equacionamentos da relação entre diversidade e currículo.
A primeira constatação talvez seja que, de fato, não é tarefa fácil para nós, educadores e educadoras, trabalharmos pedagogicamente com a diversidade.
Mas não será essa afirmativa uma contradição? Como a educação escolar pode se manter distante da diversidade sendo que a mesma se faz presente no cotidiano escolar por meio da presença de professores/as e alunos/as dos mais diferentes pertencimentos étnico-raciais, idades e culturas?
Esse desafio é enfrentado por todos nós que atuamos no campo da educação, sobretudo, o escolar. Ele atravessa todos os níveis de ensino desde a educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) até a educação superior incluindo a EJA, a Educação Profissional e a Educação Especial. Portanto, as reflexões aqui realizadas aplicam-se aos profissionais que atuam em todos esses campos, os quais realizam práticas curriculares variadas.
Para avançarmos nessas questões, uma outra tarefa faz-se necessária: é preciso ter clareza sobre a concepção de educação que nos orienta. Há uma relação estreita entre o olhar e o trato pedagógico da diversidade e a concepção de educação que informa as práticas educativas.
A educação de uma maneira geral é um processo constituinte da experiência humana, por isso se faz presente em toda e qualquer sociedade. A escolarização, em específico, é um dos recortes do processo educativo mais amplo. Durante toda a nossa vida realizamos aprendizagens de naturezas mais diferentes. Nesse processo, marcado pela interação contínua entre o ser humano e o meio, no contexto das relações sociais, é que construímos nosso conhecimento, valores, representações e identidades. Sendo assim, tanto o desenvolvimento biológico, quanto o domínio das práticas culturais existentes no nosso meio são imprescindíveis para a realização do acontecer humano.
Este último, enquanto uma experiência que atravessa toda sociedade e toda cultura, não se caracteriza somente pela unidade do gênero humano, mas, sobretudo, pela riqueza da diversidade.
Os currículos e práticas escolares que incorporam essa visão de educação tendem a ficar mais próximos do trato positivo da diversidade humana, cultural e social, pois a experiência da diversidade faz parte dos processos de socialização, de humanização e desumanização. A diversidade é um componente do desenvolvimento biológico e cultural da humanidade. Ela se faz presente na produção de práticas, saberes, valores, linguagens, técnicas artísticas, científicas, representações do mundo, experiências de sociabilidade e de aprendizagem. Todavia, há uma tensão nesse processo. Por mais que a diversidade seja um elemento constitutivo do processo de humanização, há uma tendência nas culturas, de um modo geral, de ressaltar como positivos e melhores os valores que lhe são próprios, gerando um certo estranhamento e, até mesmo, uma rejeição em relação ao diferente. É o que chamamos de etnocentrismo. Esse fenômeno, quando exacerbado, pode se transformar em práticas xenófobas (aversão ou ódio ao estrangeiro) e em racismo (crença na existência da superioridade e inferioridade racial).
Por isso, a presença da diversidade no acontecer humano nem sempre garante um trato positivo dessa diversidade. Os diferentes contextos históricos, sociais e culturais, permeados por relações de poder e dominação, são acompanhados de uma maneira tensa e, por vezes, ambígua de lidar com o diverso. Nessa tensão, a diversidade pode ser tratada de maneira desigual e naturalizada.
Estamos diante de uma terceira tarefa. A relação existente entre educação e diversidade coloca-nos diante do seguinte desafio: o que entendemos por diversidade? Que diversidade pretendemos esteja contemplada no currículo das escolas e nas políticas de currículo? Para responder a essas questões, fazem-se necessários alguns esclarecimentos e posicionamentos sobre o que entendemos por diversidade e currículo.
Seria muito mais simples dizer que o substantivo diversidade significa variedade, diferença e multiplicidade. Mas essas três qualidades não se constroem no vazio e nem se limitam a ser nomes abstratos. Elas se constroem no contexto social e, sendo assim, a diversidade pode ser entendida como um fenômeno que atravessa o tempo e o espaço e se torna uma questão cada vez mais séria quanto mais complexas vão se tornando as sociedades.
A diversidade faz parte do acontecer humano. De acordo com Elvira de
Souza Lima (2006, p.17), a diversidade é norma da espécie humana: seres humanos são diversos em suas experiências culturais, são únicos em suas personalidades e são também diversos em suas formas de perceber o mundo. Seres humanos apresentam, ainda, diversidade biológica. Algumas dessas diversidades provocam impedimentos de natureza distinta no processo de desenvolvimento das pessoas (as comumente chamadas de “portadoras de necessidades especiais”).
Como toda forma de diversidade é hoje recebida na escola, há a demanda óbvia, por um currículo que atenda a essa universalidade.
As discussões acima realizadas poderão ajudar a aprofundar as reflexões sobre a diversidade no coletivo de educadores, nos projetos pedagógicos e nas diferentes Secretarias de Educação. Afinal, a relação entre currículo e diversidade é muito mais complexa. O discurso, a compreensão e o trato pedagógico da diversidade vão muito além da visão romântica do elogio à diferença ou da visão negativa que advoga que ao falarmos sobre a diversidade corremos o risco de discriminar os ditos diferentes. Que concepções de diversidade permeiam as nossas práticas, os nossos currículos, a nossa relação com os alunos e suas famílias e as nossas relações profissionais? Como enxergamos a diversidade enquanto cidadãos e cidadãs nas nossas práticas cotidianas?
Essas indagações poderão orientar os nossos encontros pedagógicos, os processos de formação em serviço desde a educação infantil até o ensino médio e EJA. Elas já acompanham há muito o campo da educação especial porém, necessitam ser ampliadas e aprofundadas para compreendermos outras diferenças presentes na escola. É nessa perspectiva que privilegiaremos, neste texto, alguns aspectos acerca da diversidade a fim de dar mais elementos às nossas indagações sobre o currículo. São eles
• diversidade biológica e currículo;
• diversidade cultural e currículo;
• a luta política pelo direito à diversidade;
• diversidade e conhecimento;
• diversidade e ética;
• diversidade e organização dos tempos e espaços escolares.

Algumas considerações sobre a diversidade biológica ou biodiversidade

A diversidade pode ser entendida em uma perspectiva biológica e cultural. Portanto, o homem e a mulher participam desse processo enquanto espécie e sujeito sociocultural.
Do ponto de vista biológico, a variedade de seres vivos e ambientes em conjunto é chamada de diversidade biológica ou biodiversidade. Nessa concepção, entende-se que a natureza é formada por vários tipos de ambientes e cada um deles é ocupado por uma infinidade de seres vivos diferentes que se adaptam ao mesmo. Mesmo os animais e plantas pertencentes à mesma espécie apresentam diferenças entre si. Os seres humanos, enquanto seres vivos, apresentam diversidade biológica, ou seja, mostram diferenças entre si. No entanto, ao longo do processo histórico e cultural e no contexto das relações de poder estabelecidas entre os diferentes grupos humanos, algumas dessas variabilidades do gênero humano receberam leituras estereotipadas e preconceituosas, passaram a ser exploradas e tratadas de forma desigual e discriminatória. Por isso, ao refletirmos sobre a presença dos seres humanos no contexto da diversidade biológica, devemos entender dois aspectos importantes:
a) o ser humano enquanto parte da diversidade biológica não pode ser entendido fora do contexto da diversidade cultural;
b) toda a discussão a que hoje assistimos sobre a preservação, conservação e uso sustentável da biodiversidade não diz respeito somente ao uso que o homem faz do ambiente externo, mas, sobretudo, da relação deste como um dos componentes dessa diversidade. Ou seja, os problemas ambientais não são considerados graves porque afetam o planeta, entendido como algo externo, mas porque afetam a todos nós e colocam em risco a vida da espécie humana e a das demais espécies. Lamentavelmente, o avanço tecnológico do qual nos gabamos como seres dotados de razão e capazes de transformar a natureza não tem significado avanço para a própria biodiversidade da qual participamos.
Existem grupos humanos que, devido a sua história e cultura, garantem sua sobrevivência e produzem conhecimentos por meio de uma relação mais direta com o ambiente em que vivem. Entre eles podemos destacar os indígenas, as comunidades tradicionais (como os seringueiros), os remanescentes de quilombos, os trabalhadores do campo e demais povos da floresta. Estes constroem conhecimentos variados a respeito dos recursos da biodiversidade que nem sempre são considerados pela escola. Nos últimos anos, esses grupos vêm se organizando cada vez mais e passam a exigir das escolas e dos órgãos responsáveis pelas elas o direito ao reconhecimento dos seus saberes e sua incorporação aos currículos. Além disso, passam a reivindicar dos governos o reconhecimento e posse das suas terras, assim como a redistribuição e a ocupação responsável de terras improdutivas.
A falta de controle e de conhecimento dos fatores de degradação ambiental, dos desequilíbrios ecológicos de qualquer parte do sistema, da  expansão das monoculturas, a não efetivação de uma justa reforma agrária, entre outros fatores, têm colaborado para a vulnerabilidade desses e outros grupos. Tal situação afeta toda a espécie humana da qual fazemos parte. Coloca em risco a capacidade de sustentabilidade proporcionada pela biodiversidade.
Dessa forma, os problemas ambientais, políticos, culturais e sociais estão intimamente embricados. De acordo com Shiva (2003, p.97), citado por Silvério (2006,pp.10-1), o desenvolvimento só pode ser um desenvolvimento ecológico e socialmente sustentável, orientado pela busca de políticas e estratégias de desenvolvimento alternativo, para romper com o bioimperialismo o qual impõe monoculturas. O desenvolvimento ecológico e socialmente sustentável tem como orientação a construção da biodemocracia com quem respeita/cultiva a biodiversidade.
A discussão acima suscita algumas reflexões: que indagações o debate sobre a diversidade biológica traz para os currículos? A nossa abordagem em sala de aula e os nossos projetos pedagógicos sobre educação ambiental têm explorado a complexidade e os conflitos trazidos pela forma como a sociedade atual se relaciona com a diversidade biológica? Como incorporar a discussão sobre a biodiversidade nas propostas curriculares das escolas e das redes de ensino? Um primeiro passo poderia ser a reflexão sobre a nossa postura diante desse debate enquanto educadores e educadoras e partícipes dessa mesma biodiversidade.

A diversidade cultural: algumas reflexões

O ser humano se constitui por meio de um processo complexo: somos ao mesmo tempo semelhantes (enquanto gênero humano) e muito diferentes (enquanto forma de realização do humano ao longo da história e da cultura).
Podemos dizer que o que nos torna mais semelhantes enquanto gênero humano é o fato de todos apresentarmos diferenças: de gênero, raça/etnia, idades, culturas, experiências, entre outros. E mais: somos desafiados pela própria experiência humana a aprender a conviver com as diferenças. O nosso grande desafio está em desenvolver uma postura ética de não hierarquizar as diferenças e entender que nenhum grupo humano e social é melhor ou pior do que outro. Na realidade, somos diferentes.
Ao discutir a diversidade cultural, não podemos nos esquecer de pontuar que ela se dá lado a lado com a construção de processos identitários.
Assim como a diversidade, a identidade, enquanto processo, não é inata.
Ela se constrói em determinado contexto histórico, social, político e cultural.
Jacques d’Adesky (2001, p.76) destaca que a identidade, para se constituir como realidade, pressupõe uma interação. A idéia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é intermediada pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação. Assim como a diversidade, nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, ela é negociada durante a vida toda dos sujeitos por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros. Tanto a identidade pessoal quanto a identidade social são formadas em diálogo aberto. Estas dependem de maneira vital das relações dialógicas com os outros.
A diversidade cultural varia de contexto para contexto. Nem sempre aquilo que julgamos como diferença social, histórica e culturalmente construída recebe a mesma interpretação nas diferentes sociedades. Além disso, o modo de ser e de interpretar o mundo também é variado e diverso.
Por isso, a diversidade precisa ser entendida em uma perspectiva relacional.
Ou seja, as características, os atributos ou as formas “inventadas” pela cultura para distinguir tanto o sujeito quanto o grupo a que ele pertence dependem do lugar por eles ocupado na sociedade e da relação que mantêm entre si e com os outros. Não podemos esquecer que essa sociedade é construída em contextos históricos, socioeconômicos e políticos tensos, marcados por processos de colonização e dominação. Estamos, portanto, no terreno das desigualdades, das identidades e das diferenças.
Trabalhar com a diversidade na escola não é um apelo romântico do final do século XX e início do século XXI. Na realidade, a cobrança hoje feita em relação à forma como a escola lida com a diversidade no seu cotidiano, no seu currículo, nas suas práticas faz parte de uma história mais ampla. Tem a ver com as estratégias por meio das quais os grupos humanos considerados diferentes passaram cada vez mais a destacar politicamente as suas singularidades, cobrando que as mesmas sejam tratadas de forma justa e igualitária, desmistificando a idéia de inferioridade que paira sobre algumas dessas diferenças socialmente construídas e exigindo que o elogio à diversidade seja mais do que um discurso sobre a variedade do gênero humano. Ora, se a diversidade faz parte do acontecer humano, então a escola, sobretudo a pública, é a instituição social na qual as diferentes presenças se encontram. Então, como essa instituição poderá omitir o debate sobre a diversidade? E como os currículos poderiam deixar de discuti-la?
Mas o que entendemos por currículo? Segundo Antonio Flávio B.
Moreira e Vera Maria Candau (2006, p.86) existem várias concepções de currículo, as quais refletem variados posicionamentos, compromissos e pontos de vista teóricos. As discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, debates sobre os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações sociais, os valores e as identidades dos nossos alunos e alunas.
Os autores se apóiam em Silva (1999), ao afirmarem que, em resumo, as questões curriculares são marcadas pelas discussões sobre conhecimento, verdade, poder e identidade.
Retomo, aqui, uma discussão já realizada em outro texto (Gomes, 2006, pp.31-2). O currículo não está envolvido em um simples processo de transmissão de conhecimentos e conteúdos. Possui um caráter político e histórico e também constitui uma relação social, no sentido de que a produção de conhecimento nele envolvida se realiza por meio de uma relação entre pessoas. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (1995, p.194) o conhecimento, a cultura e o currículo são produzidos no contexto das relações sociais e de poder. Esquecer esse processo de produção – no qual estão envolvidas as relações desiguais de poder entre grupos sociais – significa reificar o conhecimento e reificar o currículo, destacando apenas os seus aspectos de consumo e não de produção.
Ainda segundo esse autor, mesmo quando pensamos no currículo como uma coisa, como uma listagem de conteúdos, por exemplo, ele acaba sendo, fundamentalmente, aquilo que fazemos com essa coisa, pois, mesmo uma lista de conteúdos não teria propriamente existência e sentido, se não se fizesse nada com ela. Nesse sentido, o currículo não se restringe apenas a idéias e abstrações, mas a experiências e práticas concretas, construídas por sujeitos concretos, imersos em relações de poder. O currículo pode ser considerado uma atividade produtiva e possui um aspecto político que pode ser visto em dois sentidos: em suas ações (aquilo que fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos faz). Também pode ser considerado um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, participa do processo de constituição de sujeitos (e sujeitos também muito particulares).
Sendo assim, as narrativas contidas no currículo, explícita ou implicitamente, corporificanoções particulares sobre conhecimento, sobre formas de organização da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais. Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são (Silva, 1995, p. 195).
A produção do conhecimento, assim como sua seleção e legitimação, está transpassada pela diversidade. Não se trata apenas de incluir a diversidade como um tema nos currículos. As reflexões do autor nos sugerem que é preciso ter consciência, enquanto docentes, das marcas da diversidade presentes nas diferentes áreas do conhecimento e no currículo como um todo: ver a diversidade nos processos de produção e de seleção do conhecimento escolar.
O autor ainda adverte que as narrativas contidas no currículo trazem embutidas noções sobre quais grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos sociais podem apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos de qualquer representação. Elas, além disso, representam os diferentes grupos sociais de forma diferente: enquanto as formas de vida e a cultura de alguns grupos são valorizadas e instituídas como cânone, as de outros são desvalorizadas e proscritas. Assim, as narrativas do currículo contam histórias que fixam noções particulares de gênero, raça, classe – noções que acabam também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos (de autoridade) (Silva, 1995, p. 195).
A perspectiva de currículo acima citada poderá nos ajudar a questionar a noção hegemônica de conhecimento que impera na escola, levando-nos a refletir sobre a tensa e complexa relação entre esta noção e os outros saberes que fazem parte do processo cultural e histórico no qual estamos imersos.
Podemos indagar que histórias as narrativas do currículo têm contado sobre as relações raciais, os movimentos do campo, o movimento indígena, o movimento das pessoas com deficiência, a luta dos povos da floresta, as trajetórias dos jovens da periferia, as vivências da infância (principalmente a popular) e a luta das mulheres? São narrativas que fixam os sujeitos e os movimentos sociais em noções estereotipadas ou realizam uma interpretação emancipatória dessas lutas e grupos sociais? Que grupos sociais têm o poder de se representar e quais podem apenas ser representados nos currículos? Que grupos sociais e étnico/raciais têm sido historicamente representados de forma estereotipada e distorcida? Diante das respostas a essas perguntas, só nos resta agir, sair do imobilismo e da inércia e cumprir a nossa função pedagógica diante da diversidade: construir práticas pedagógicas que realmente expressem a riqueza das identidades e da diversidade cultural presente na escola e na sociedade. Dessa forma poderemos avançar na superação de concepções românticas sobre a diversidade cultural presentes nas várias práticas pedagógicas e currículos.


A luta política pelo direito à diversidade

Como já foi dito, nem sempre a diversidade entendida como a construção histórica, social e cultural das diferenças implica em um trato igualitário e democrático em relação àqueles considerados diferentes. Muito do que fomos educados a ver e distinguir como diferença é, na realidade, uma invenção humana que, ao longo do processo cultural e histórico, foi tomando forma e materialidade. No processo histórico, sobretudo nos contextos de colonização e dominação, os grupos humanos não passaram a hostilizar e dominar outros grupos simplesmente pelo fato de serem diferentes. Como nos diz Carlos Rodrigues Brandão (1986, p.08) “por diversas vezes, os grupos humanos tornam o outro diferente para fazê-lo inimigo”.
Por isso, a inserção da diversidade nos currículos implica compreender as causas políticas, econômicas e sociais de fenômenos como etnocentrismo, racismo, sexismo, homofobia e xenofobia. Falar sobre diversidade e diferença implica posicionar-se contra processos de colonização e dominação. É perceber como, nesses contextos, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas sendo, portanto, tratadas de forma desigual e discriminatória. É entender o impacto subjetivo destes processos na vida dos sujeitos sociais e no cotidiano da escola.
É incorporar no currículo, nos livros didáticos, no plano de aula, nos projetos pedagógicos das escolas os saberes produzidos pelas diversas áreas e ciências articulados com os saberes produzidos pelos movimentos sociais e pela comunidade.
Há diversos conhecimentos produzidos pela humanidade que ainda estão ausentes nos currículos e na formação dos professores, como, por exemplo, o conhecimento produzido pela comunidade negra ao longo da luta pela superação do racismo, o conhecimento produzido pelas mulheres no processo de luta pela igualdade de gênero, o conhecimento produzido pela juventude na vivência da sua condição juvenil, entre outros. É urgente incorporar esses conhecimentos que versam sobre a produção histórica das diferenças e das desigualdades para superar tratos escolares românticos sobre a diversidade.
Para tal, todos nós precisaremos passar por um processo de reeducação do olhar. O reconhecimento e a realização dessa mudança do olhar sobre o “outro” e sobre nós mesmos a partir das diferenças deve superar o apelo romântico ao diverso e ao diferente e construir políticas e práticas pedagógicas e curriculares nas quais a diversidade é uma dimensão constitutiva do currículo, do planejamento das ações, das relações estabelecidas na escola.
A fim de conseguir alcançar esse objetivo, todos nós que atuamos e nos ocupamos da escola somos desafiados a rever o ordenamento curricular
e as práticas pedagógicas, entendendo que estes não representam apenas uma determinada visão de conhecimento que pode excluir o “outro” e suas diferenças, mas também e, sobretudo, uma determinada visão dos alunos
(Arroyo, 2006, p.54).
De acordo com Miguel Arroyo (2006, p.54) os educandos nunca foram esquecidos nas propostas curriculares; a questão é com que tipo de olhar eles foram e são vistos. Podemos ir além: com que olhar foram e são vistos os educandos nas suas diversas identidades e diferenças? Será que ainda continuamos discursando sobre a diversidade, mas agindo, planejando, organizando o currículo como se os alunos fossem um bloco homogêneo e um corpo abstrato? Como se convivêssemos com um protótipo único de aluno? Como se a função da escola, do trabalho docente fosse conformar todos a esse protótipo único?
Os educandos são os sujeitos centrais da ação educativa. E foram eles, articulados ou não em movimentos sociais, que trouxeram a luta pelo direito à diversidade como uma indagação ao campo do currículo. Esse é um movimento que vai além do pedagógico. Estamos, portanto, em um campo político.
Cabe destacar, aqui, o papel dos movimentos sociais e culturais nas demandas em prol do respeito à diversidade no currículo. Tais movimentos indagam a sociedade como um todo e, enquanto sujeitos políticos, colocam em xeque a escola uniformizadora que tanto imperou em nosso sistema de ensino.
Questionam os currículos, imprimem mudanças nos projetos pedagógicos, interferem na política educacional e na elaboração de leis educacionais e diretrizes curriculares.
De acordo com Valter Roberto Silvério (2006, p.09), a entrada em cena, na segunda metade do século XX, de movimentos sociais denominados identitários, provocou transformações significativas na forma como a política pública educacional era concebida durante a primeira metade daquele século.
Para este autor, a demanda por reconhecimento é aquela a partir da qual vários movimentos sociais que têm por fundamento uma identidade cultural (negros, indígenas, homossexuais, entre outros) passam a reivindicar reconhecimento, quer seja pela ausência deste ou por um reconhecimento considerado inadequado de sua diferença.
Ainda segundo Silvério (2006), um dos aprendizados trazidos pelo debate sobre o lugar da diversidade e da diferença cultural no Brasil contemporâneo é que a sociedade brasileira passa por um processo de
(re) configuração do pacto social a partir da insurgência de atores sociais até então pouco visíveis na cena pública. Esse contexto coloca um conjunto de problemas e desafios à sociedade como um todo. No que diz respeito à educação, ou mais precisamente, à política educacional, um dos aspectos significativos desse novo cenário é a percepção de que a escola é um espaço de sociabilidade para onde convergem diferentes experiências socioculturais, as quais refletem diversas e divergentes formas de inserção grupal na história do país.
Podemos dizer que a sociedade brasileira, a partir da segunda metade do século XX, começa a viver – não sem contradições e conflitos - um
momento de maior consolidação de algumas demandas dos movimentos sociais e da sua luta pelo direito à diferença. É possível perceber alguns avanços na produção teórica educacional, no Governo Federal, no Ministério da Educação, nas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, nos projetos pedagógicos das escolas, na literatura infanto-juvenil, na produção de material didático alternativo e acessível em consonância às necessidades educacionais especiais dos alunos. Entretanto, apesar dos avanços, ainda existe muito trabalho a fazer.
Aos poucos, vêm crescendo os coletivos de profissionais da educação sensíveis à diversidade. Muitos deles têm a sua trajetória marcada pela inserção nos movimentos sociais, culturais e identitários e carregam para a vida profissional suas identidades coletivas e suas diferenças. Há uma nova sensibilidade nas escolas públicas, sobretudo, para a diversidade e suas múltiplas dimensões na vida dos sujeitos. Sensibilidade que vem se traduzindo em ações pedagógicas de transformação do sistema educacional em um sistema inclusivo, democrático e aberto à diversidade.
Mas será que essas ações são iniciativas apenas de grupos de educadores (as) sensíveis diante da diversidade? Ou elas são assumidas como um dos eixos do trabalho das escolas, das propostas políticas pedagógicas das Secretarias de Educação e do MEC? Elas são legitimadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais? Fazem parte do currículo vivenciado nas escolas e das políticas curriculares? A resposta a essas questões poderá nos ajudar a compreender o lugar ocupado pela diversidade cultural na educação escolar.
Que indagações a diversidade traz aos currículos?
E nas escolas, nos currículos e políticas educacionais, como a diversidade se faz presente? Será que os movimentos sociais conseguem indagar e incorporar mais a diversidade do que a própria escola e a política educacional?
Um bom exercício para perceber o caráter indagador da diversidade nos currículos seria analisar as propostas e documentos oficiais com os quais lidamos cotidianamente. Certamente, iremos notar que a questão da diversidade aparece, porém, não como um dos eixos centrais da orientação curricular, mas, sim, como um tema. E mais: muitas vezes, a diversidade aparece somente como um tema que transversaliza o currículo entendida como pluralidade cultural. A diversidade é vista e reduzida sob a ótica da cultura. É certo que a antropologia, hoje, não trabalha mais com a idéia da existência de uma só cultura. As culturas são diversas e variadas. A escola e seu currículo não demonstram dificuldade de assumir que temos múltiplas culturas. Essa situação possibilita o reconhecimento da cultura docente, do aluno e da comunidade, a presença da cultura escolar, mas não questiona o lugar que a diversidade de culturas ocupa na escola. Mais do que múltiplas, as culturas diferem entre si. E é possível que, em uma mesma escola, localizada em uma região específica, que atenda uma determinada comunidade, encontremos no interior da sala de aula alunos que portam diferentes culturas locais, as quais se articulam com as do bairro e região. Eles apresentam diferentes formas de ver e conceber o mundo, possuem valores diferenciados, pertencem a diferentes grupos étnico-raciais, diferem-se em gênero, idade e experiência de vida.
Por isso, mais do que uma multiplicidade de culturas, no que se refere ao seu número, variedade ou “pluralidade”, vivemos no contexto das diferentes culturas, marcadas por singularidades advindas dos processos históricos, políticos e também culturais por meio dos quais são construídas. Vivemos, portanto, no contexto da diversidade cultural e esta, sim, deve ser um elemento presente e indagador do currículo. A cultura não deve ser vista como um tema e nem como disciplina, mas como um eixo que orienta as experiências e práticas curriculares.
Podemos indagar como a diversidade é apresentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9394/96, entendida como a orientação legal para a construção das diretrizes curriculares nacionais dela advindas. No seu artigo 26, a LDB confere liberdade de organização aos sistemas de ensino, desde que eles se orientem a partir de um eixo central por ela colocado: os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base comum nacional que será complementada, em cada sistema de ensino e em cada escola, por uma parte diversificada. Esta última, segundo a lei, é exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
Dez anos se passaram. Podemos dizer que houve avanço em relação
à sensibilidade para com a diversidade incorporada – mesmo que de forma tímida – na Lei. Os movimentos sociais, a reflexão das ciências sociais, as políticas educacionais, os projetos das escolas expressam esse avanço com contornos e nuances diferentes. Esse movimento de mudança sugere a necessidade de aprofundar mais sobre a diversidade nos currículos.
Reconhecer não apenas a diversidade no seu aspecto regional e local, mas,sim, a sua presença enquanto construção histórica, cultural e social que marca a trajetória humana. Rever o nosso paradigma curricular. Ainda estamos presos à divisão núcleo comum e parte diversificada presente na lei 5692/71.
O peso da rigidez dessa lei marcou profundamente a organização e a estrutura das escolas. É dela que herdamos, sobretudo, a forma fragmentada de como o conhecimento escolar e o currículo ainda são tratados e a persistente associação entre educação escolar e preparo para o mercado de trabalho.
Segundo Arroyo (2006, p.56), a visão reducionista dessa lei marcou as décadas de 1970 e 1980 como uma forma hegemônica de pensar e organizar o currículo e as escolas e ainda se faz presente e persistente na visão que muitas escolas têm do seu papel social e na visão que docentes e administradores têm de sua função profissional.
Nessa perspectiva curricular, a diversidade está presente na parte diversificada, a qual os educadores sabem que, hierarquicamente, por mais que possamos negar, ocupa um lugar menor do que o núcleo comum. E é neste último que encontramos os ditos conhecimentos historicamente acumulados recontextualizados como conhecimento escolar.
Nessa concepção, as características regionais e locais, a cultura, os costumes, as artes, a corporeidade, a sexualidade são “partes que diversificam o currículo” e não “núcleos”. Elas podem até mesmo trazer uma certa diversificação, um novo brilho, mas não são consideradas como integrantes do eixo central. O lugar não hegemônico ocupado pelas questões sociais, culturais, regionais e políticas que compõem a “parte diversificada” dos currículos pode ser visto, ao mesmo tempo, como vulnerabilidade e liberdade. É nesta parte que, muitas vezes, os educadores e as educadoras conseguem ousar, realizar trabalhos mais próximos da comunidade, explorar o potencial criativo, artístico e estético dos alunos e alunas. No entanto, mesmo que reconheçamos a importância desse fôlego dado à diversidade nos documentos oficiais, é importante destacar que ele não é suficiente, pois coloca essa discussão em um lugar provisório, transversal e, por vezes, marginal. Além disso, tende a reduzir a diversidade cultural à diversidade regional e não dialoga com os sujeitos, suas vivências e práticas.
A incorporação da diversidade no currículo deve ser entendida não como uma ilustração ou modismo.
Antes, deve ser compreendida no campo político e tenso no qual as diferenças são produzidas, portanto, deve ser vista como um direito. Um direito garantido a todos e não somente àqueles que são considerados diferentes. Se a convivência com a diferença já é salutar para a reeducação do nosso olhar, dos nossos sentidos, da nossa visão de mundo, quanto mais o aprendizado do imperativo ético que esse processo nos traz. Conviver com a diferença (e com os diferentes) é construir relações que se pautem no respeito, na igualdade social, na igualdade de oportunidades e no exercício de uma prática e postura democráticas.
Alguns aspectos específicos do currículo indagados pela diversidade.
Diversidade e conhecimento – A antropóloga Paula Meneses (2005), ao analisar o caso da universidade em Moçambique e a produção de saberes realizada pelos países que se encontram fora do eixo do Ocidente, traz algumas reflexões que podem nos ajudar a indagar a relação entre conhecimento e diversidade no Brasil. Essa autora discute que o saber científico se impôs como forma dominante de conhecimento sobre os outros conhecimentos produzidos pelas diferentes sociedades e povos africanos. Nesse sentido, a discussão sobre a relação ou distinção entre conhecimento e saber - e que tem servido aos interesses dos grupos sócio-raciais hegemônicos - é colocada pela autora no contexto de um debate epistemológico e político. Nesse mesmo debate, podemos localizar a dicotomia construída nos currículos entre o saber considerado como “comum a todos” e o saber entendido como “diverso”.
Guardadas as devidas especificidades históricas, sociais, culturais e geográficas que dizem respeito à realidade africana abordada pela autora acima citada, podemos notar uma situação semelhante quando refletimos sobre o lugar ocupado pelos saberes construídos pelos movimentos sociais e pelos setores populares na escola brasileira. Não podemos afirmar que esses saberes são totalmente inexistentes na realidade escolar. Eles existem, porém, muitas vezes, com o formato de atividades paralelas, projetos sociais e experiências lúdicas. Em outros momentos, encontram-se estereotipados e presentes no chamado “currículo oculto” e, nesse sentido, podem ser compreendidos como a produção da não-existência, nos dizeres de Boaventura de Sousa Santos (2004). Ou seja, certos saberes que não encontram um lugar definido nos currículos oficiais podem ser compreendidos como uma ausência ativa e, muitas vezes, intencionalmente produzida.
Inspirados em Boaventura de Sousa Santos (2004), podemos dizer que há, também, na educação brasileira, uma monocultura do saber que privilegia o saber científico (transposto didaticamente como conteúdo escolar) como único e legítimo. Essa forma de interpretar e lidar com o conhecimento se perpetua na teoria e na prática escolar em todos os níveis de ensino desde a educação infantil até o ensino superior.
Ao mesmo tempo, existem focos de resistência que sempre lutaram contra a hegemonia de certos conteúdos escolares previamente selecionados e o apogeu da ciência moderna na escola brasileira. Estes já conseguiram algumas vitórias satisfatórias. Tal processo vem ocorrendo, sobretudo, nas propostas mais progressistas de educação escolar tais como: educação do campo, educação indígena, educação e diversidade étnico-racial, educação inclusiva, educação ambiental e EJA. Estas propostas e projetos têm se realizado - não sem conflitos
- em algumas escolas públicas e em propostas pedagógicas da educação básica.
São experiências de gestão democrática, educação para a diversidade, educação ambiental, educação do campo, educação quilombola etc.
Essas e outras indagações que podemos fazer ao conhecimento e
sua presença no currículo são colocadas principalmente pelos movimentos sociais e pelos sujeitos em movimento. Eles questionam não só o currículo que se efetiva nas escolas como, também, os procedimentos e instrumentos que usamos para avaliar os alunos e a forma como os conhecimentos são aprendidos e apreendidos. Isso nos impele, enquanto educadores a “(...) refletir sobre nossas ações cotidianas na escola, nossas práticas em sala de aula, sobre a linguagem que utilizamos, sobre aquilo que prejulgamos ou outras situações do cotidiano”. (Fernandes e Freitas, 2006, p.117). A diversidade coloca em xeque os processos tradicionais de avaliação escolar.
Nessa perspectiva, os movimentos sociais conquanto sujeitos políticos podem ser vistos como produtores de saber. Este nem sempre tem sido considerado enquanto tal pelo próprio campo educacional. O não reconhecimento dos saberes e das práticas sociais no currículo tem resultado no desperdício da experiência social dos(as) educandos(as), dos(as) educadores(as) e da comunidade nas propostas educacionais (Santos, 2006).
A consideração destes e de outros saberes trará novos elementos não só para as análises dos movimentos sociais e seus processos de produção do conhecimento como também para a discussão sobre a reorientação curricular.
A luta travada em torno da educação do campo, indígena, do negro, das comunidades remanescentes de quilombos, das pessoas com deficiência tem desencadeado mudanças na legislação e na política educacional, revisão de propostas curriculares e dos processos de formação de professores. Também tem indagado a relação entre conhecimento escolar e o conhecimento produzido pelos movimentos sociais.
Ainda inspirados em Boaventura de Sousa Santos (2006), podemos dizer que a relação entre currículo e conhecimento nos convida a um exercício epistemológico e pedagógico de tornar os saberes produzidos pelos movimentos sociais e pela comunidade em “emergências”, uma vez que a sua importância social, política e pedagógica, por vezes, tem sido colocada no campo das “ausências” resultando no “desperdício da experiência social e educativa”. Essa é mais uma indagação que podemos fazer aos currículos.
Diversidade e ética – além de indagar a relação currículo e conhecimento, a discussão sobre a diversidade permite-nos avançar em um outro ponto do debate: a indagação sobre diversidade e ética.
Como se pode notar, assumir a diversidade no currículo implica compreender o nosso caminhar no processo de formação humana que se realiza em um contexto histórico, social, cultural e político. Nesse percurso construímos as nossas identidades, representações e valores sobre nós mesmos e sobre os “outros”. Construímos relações que podem ou não se pautar no respeito às diferenças. Estas extrapolam o nível interpessoal e intersubjetivo, pois são construídas nas relações sociais. Será que nos relacionamos com os “outros” presentes na escola, considerando os como sujeitos sociais e de direitos?
O reconhecimento do aluno e do professor como sujeitos de direitos é também compreendê-los como sujeitos éticos. No entanto, a relação entre ética e diversidade ainda é pouco explorada nas discussões sobre o currículo. Segundo Marilena Chauí (1998, p.338), do ponto de vista dos valores, a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram ser o bem e a virtude.
Por realizar-se como relação intersubjetiva e social a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas, econômicas e culturais da ação moral.
Marilena Chauí (1998) ainda esclarece que embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque os seus valores são obrigatórios para todos os seus membros), ela está em relação com o tempo e a história. Por isso se transforma para responder a exigências novas da sociedade e da cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo.
Um bom caminho para repensar as propostas curriculares para infância, adolescência, juventude e vida adulta poderá ser uma orientação que tenha como foco os sujeitos da educação. A grande questão é: como o conhecimento escolar poderá contribuir para o pleno desenvolvimento humano dos sujeitos?
Não se trata de negar a importância do conhecimento escolar, mas de abolir o equivoco histórico da escola e da educação de ter como foco prioritariamente os “conteúdos” e não os sujeitos do processo educativo.
Discutir a diversidade no campo da ética significa rever posturas, valores, representações e preconceitos que permeiam a relação estabelecida com os alunos, a comunidade e demais profissionais da escola. Segundo Amauri Carlos Ferreira (2006, p32), a ética é referência para que a escolha do sujeito seja aceita como um princípio geral que respeite e proteja o ser humano no mundo. Nesse sentido, o ethos, como costume, articula-se às escolhas que o sujeito faz ao longo da vida. A ética fundamenta a moral, ao expressar a sua natureza reflexiva na sistematização das normas.
A relação entre ética e diversidade nos coloca diante de práticas e políticas voltadas para o respeito às diferenças e para a superação dos preconceitos e discriminações. Tomaremos como exemplo dessas práticas a educação de pessoas com deficiência, a educação dos negros e a educação do campo.
No que se refere à educação de pessoas com deficiência, algumas indagações podem ser feitas: como vemos o debate sobre a inclusão das crianças com deficiência na escola regular comum? As escolas regulares comuns introduzem no seu currículo a necessidade de uma postura ética em relação a essas crianças? Enxergamos essas crianças na sua potencialidade humana e criadora ou nos apegamos à particularidade da “deficiência” que elas apresentam? Esse debate faz parte dos processos de formação inicial e em serviço? Buscamos conhecer as experiências significativas realizadas na perspectiva da educação inclusiva?
Nesse momento, faz-se necessário retomar a concepção de diversidade que orienta a reflexão presente nesse texto: a diversidade é entendida como a construção histórica, cultural e social das diferenças. A construção das diferenças ultrapassa as características biológicas, observáveis a olho nu.
Nessa perspectiva, no caso das pessoas com deficiência, interessa reconhecêlas como sujeitos de direitos e compreender como se construiu e se constrói historicamente o olhar social e pedagógico sobre a sua diferença. A construção do olhar sobre as pessoas com deficiências ultrapassa as características biológicas. Não será suficiente incluir as crianças com deficiência na escola regular comum se também não realizarmos um processo de reeducação do olhar e das práticas a fim de superar os estereótipos que pairam sobre esses sujeitos, suas histórias, suas potencialidades e vivências. A construção histórica e cultural da deficiência (ou necessidade especial, como ainda nomeiam alguns fóruns), enquanto uma diferença que se faz presente nos mais diversos grupos humanos, é permeada de diversas leituras e interpretações. Muitas delas estão alicerçadas em preconceitos e discriminações denunciados historicamente por aqueles (as) que atuam no campo da Educação Especial e pelos movimentos sociais que lutam pela garantia dos direitos desses sujeitos. Como todo processo de luta pelo direito à diferença, esse também é tenso, marcado por limites e avanços. É nesse campo complexo que se encontram as propostas de educação inclusiva.
Na última década houve vários avanços nas políticas de inclusão. Propostas de educação inclusiva acontecem nas redes de educação e nas escolas. São políticas e propostas orientadas por concepções mais democráticas de educação. O debate torna-se necessário não apenas no âmbito das propostas, mas também no âmbito das concepções de diferença, de deficiência e de inclusão. A inclusão de toda diversidade e, especificamente, das pessoas com deficiência indaga a escola, os currículos, a sua organização, os rituais de enturmação, os processos de avaliação e todo o processo ensino aprendizagem.
Indaga, sobretudo, a cultura escolar não imune à construção histórica, cultural e social da diversidade e das diferenças. As práticas significativas de educação inclusiva se propõem a desconstruir o imaginário negativo sobre as diferenças, construído no contexto das desigualdades sociais, das práticas discriminatórias e da lenta implementação da igualdade de oportunidades em nossa sociedade.
Os teóricos que investigam a inclusão de crianças com deficiência na escola regular comum possuem opiniões diversas sobre o tema e o indagam a partir de diferentes abordagens teóricas e políticas. Carlos Skliar (2004, p.12) questiona: a escola regular tende a produzir mecanismos educativos dentro de um marco de diversidade cultural? Ao refletir sobre a estrutura rígida que ainda impera nas escolas, a sua organização temporal, sobre o fenômeno da repetência, a exclusão sistemática, a discriminação com relação às variações lingüísticas, raciais, étnicas etc, o autor conclui que esse processo ainda não se concretizou. Podemos dizer que ele ainda está em construção, com maior ou menor amplitude, dependendo do contexto político-pedagógico, do alcance das políticas e práticas de educação inclusiva, da forma como as diferenças são vistas no interior das escolas e da organização escolar.
Nesse sentido, o debate sobre a inclusão de crianças com deficiência revela que não basta apenas a inclusão física dessas crianças na escola. Há também a necessidade de uma mudança de lógica, da postura pedagógica, da organização da escola (seus tempos e espaços) e do currículo escolar para que a educação inclusiva cumpra o seu objetivo educativo. É preciso também compreender os dilemas e conflitos entre as perspectivas clínicas e pedagógicas que acompanham a história da
Educação Especial. E mais: compreender as discussões e práticas em torno dessa diferença como mais um desafio na garantia do direito à educação e conhecer as várias experiências educacionais inclusivas que vêm sendo realizadas em diferentes estados e municípios. Estas experiências têm revelado a eficiência e os benefícios da educação inclusiva não só para os alunos com deficiência, mas para a escola com um todo.
A educação dos negros é um outro campo político e pedagógico que nos ajuda a avançar na relação entre ética e diversidade e traz mais indagações ao currículo. Como a escola lida com a cultura negra e com as demandas do Movimento Negro? Garantir uma educação de qualidade para todos significa, também, a nossa inserção na luta anti-racista? Colocamos a discussão sobre a questão racial no currículo no campo da ética ou a entendemos como uma reivindicação dos ditos “diferentes” que só deverá ser feita pelas escolas nas quais o público atendido é de maioria negra? Afinal, alunos brancos e índios precisam saber mais sobre a cultura negra, o racismo, a desigualdade racial? De forma semelhante podemos indagar: e os alunos brancos, negros e quilombolas precisam saber mais sobre os povos indígenas?
Como faremos para articular todas essas dimensões? Precisaremos de um currículo específico que atenda a cada diferença? Ou essas discussões podem e devem ser incluídas no currículo de uma maneira geral?
Caminhando na mesma perspectiva de Boaventura Sousa Santos (2006), podemos dizer que a resposta a essas questões passa por uma ruptura política e epistemológica. Do ponto de vista político, estamos desafiados a reinventar novas práticas pedagógicas e curriculares e abrir um novo horizonte de possibilidades cartografado por alternativas radicais às que deixaram de o ser. E epistemológico na medida em que realizarmos uma crítica à racionalidade ocidental, entendida como uma forma de pensar que se tornou totalizante e hegemônica, e propusermos novos rumos para sua superação a fim de alcançarmos uma transformação social. Isso nos leva a indagar em que medida os currículos escolares expressam uma visão restrita de conhecimento, ignorando e até mesmo desprezando outros conhecimentos, valores, interpretações da realidade, de mundo, de sociedade e de ser humano acumulados pelos coletivos diversos.
Entendendo que a questão racial permeia toda a história social, cultural e política brasileira e que afeta a todos nós, independentemente do nosso pertencimento étnico-racial, o movimento negro brasileiro tem feito reivindicações e construído práticas pedagógicas alternativas, a fim de introduzir essa discussão nos currículos. Ricas experiências têm sido desenvolvidas em vários estados e municípios, com apoio ou não das universidades e secretarias estaduais e municipais.
No entanto, no início do terceiro milênio, o movimento negro passou a adotar uma postura mais propositiva, realizando intervenções sistemáticas no interior do Estado. Dessas novas iniciativas, alguns avanços foram conseguidos.
Um deles é a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR). Esta secretaria, de abrangência nacional, é responsável por várias ações voltadas para a igualdade racial em conjunto com outros ministérios, secretarias estaduais e municipais, universidades, movimentos sociais e ONG’s. Além da SEPPIR, foi constituída no interior da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), a Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional que tem realizado publicações, conferências e produção de material didático voltado para a temática.
Nessa nova forma de intervenção do Movimento Negro e de intelectuais comprometidos com a luta anti-racista, as escolas de educação básica estão desafiadas a implementar a lei de nº 10.639/03. Esta lei torna obrigatória a inclusão do ensino da História da África e da Cultura Afro-
Brasileira nos currículos dos estabelecimentos de ensino públicos e particulares da educação básica. Trata-se de uma alteração da lei nº 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, na qual foram incluídos mais três artigos, os quais versam sobre essa obrigatoriedade. Ela também acrescenta que o dia 20 de novembro (considerado dia da morte de Zumbi) deverá ser incluído no calendário escolar como dia nacional da consciência negra, tal como já é comemorado pelo movimento negro e por alguns setores da sociedade.
A partir desta lei, o Conselho Nacional de Educação aprovou a resolução 01 de 17 de março de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Nesse sentido, as escolas da educação básica poderão se orientar a partir de um documento que discute detalhadamente o teor da lei, apresentando sugestões de trabalho e de práticas pedagógicas.
Os Movimentos do Campo também têm conseguido, aos poucos, transformar demandas em práticas e políticas educacionais (Arroyo, Caldart e Molina, 2004). Em 2002, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, pormeio da Resolução CNE/CEB n. 01, de 03 de abril de 2002. A instituição das diretrizes é resultado das lutas e reivindicações dos movimentos sociais e organizações que lutam por uma educação que contemple a diversidade dos povos que vivem no e do campo com suas diversas identidades, tais como, Sem Terra, Pequenos Agricultores, Quilombolas, Povos da Floresta, Pescadores, Ribeirinhos, Extrativistas e Assalariados Rurais.
A implementação das leis e das diretrizes acima citadas vem somar às demandas destes e de outros movimentos sociais que se mantêm atentos à luta por uma educação que articule a garantia dos direitos sociais e o respeito à diversidade humana e cultural. No entanto, há que se indagar como, e se, esses avanços políticos têm sido considerados pelo campo do currículo, pelo currículo que se realiza no cotidiano das escolas e pela ação pedagógica de uma maneira geral.


Diversidade e organização dos tempos e espaços escolares – Um currículo que respeita a diversidade precisa de um espaço/tempo objetivo para ser concretizado. Nesse sentido, podemos indagar como a educação escolar tem equacionado a questão do tempo e do espaço escolar. Eles são pensados levando em conta os coletivos diversos? O tempo/espaço escolar leva em conta os educandos com deficiência ou aqueles que dividem o seu tempo entre escola, trabalho e sobrevivência, os jovens e adultos trabalhadores da EJA etc?
Os currículos incorporam uma organização espacial e temporal do conhecimento e dos processos de ensino aprendizagem.
A rigidez e a naturalização da organização dos tempos e espaços escolares entram em conflito com a diversidade de vivências dos tempos e espaços dos alunos e das alunas.
Segundo Arroyo (2004a), a escola é também uma organização temporal. Por isso, o currículo pode ser visto como um ordenamento temporal do conhecimento e dos processos de ensinar e aprender. A organização escolar é ainda bastante rígida, segmentada e uniforme em nossa tradição, à qual todos(as) alunos e alunas indistintamente têm de adequar seus tempos.
A partir das reflexões do autor podemos dizer que a relação diversidade-currículo se defronta com um dado a ser equacionado: os(as) educandos (as) são diversos também nas vivências e controle de seus tempos de vida, trabalho e sobrevivência, gerando uma tensão entre tempos escolares e tempos da vida, entre tempos rígidos do aprender escolar e tempos não controláveis do sobreviver. Esta tensão é maior nos coletivos sociais submetidos a formas de vida e de sobrevivência precarizadas. Como equacionar essas tensões? Que tipo de organização escolar e que ordenamento temporal dos currículos e dos processos de ensinar-aprender serão os mais adequados para garantir a permanência e o direito à educação de crianças, adolescentes, jovens e adultos submetidos a tempos da vida tão precários?
Serão os(as) educandos (as) que terão que se adequar aos tempos rígidos da escola ou estes terão que ser repensados em função das diversas vivências e controle dos tempos dos(as) educandos(as)?
Propostas de escolas e de redes de ensino vêm tentando minorar essas tensões tomando como critério o respeito à diversidade de vivências do tempo dos (as) alunos(as) e da comunidade. Nesse ponto tão nuclear, a diversidade indaga os currículos e as escolas: repensar seu ordenamento temporal como exigência da garantia do direito de todos as) à educação.
As pesquisas educacionais mostram que a rigidez desse ordenamento é uma das causas do abandono escolar de coletivos sociais considerados como mais vulneráveis.
Rever esses ordenamentos temporais é uma exigência ética e política para a garantia do direito à diversidade.
A tendência da escola é flexibilizar os tempos somente para aqueles alunos e alunas estigmatizados como lentos, desacelerados, desatentos e/ou com problemas de aprendizagem.
Quando refletimos sobre a lógica temporal, na perspectiva da diversidadecultural e humana, trazemos novas indagações e problematizações a esse tipo de raciocínio ainda tão presente nas escolas. Na realidade, a preocupação da escola deverá ser dar a todos(as) o devido tempo de aprender, conviver, socializar, formar-se, conseqüentemente, ter como critério na organização do currículo a produção de um tempo escolar acolhedor e flexível que se aproxime cada vez mais da dimensão cíclica e complexa das temporalidades humanas.
O tempo para aprender não é um tempo curto. E, além disso, a escola não é só um espaço/tempo de aprendizagem. Ela é também um espaço sociocultural e imprime marcas profundas no nosso processo de formação humana. Por isso, a organização escolar não pode ser reduzida a um tempo empobrecido de experiências pedagógicas e de vida.
É preciso desnaturalizar o nosso olhar sobre o tempo escolar. Como nos
diz Miguel Arroyo (2004a), o tempo da escola é conflitivo porque é um tempo instituído, que foi durante mais de um século se cristalizando em calendários, níveis, séries, semestres, bimestres, rituais de transmissão, avaliação, reprovação, repetência. Entender a lógica institucionalizada do tempo escolar que se impõe sobre os/as alunos/as e professores(as) é fundamental para compreender muitos problemas crônicos da educação escolar.
É ainda este autor que nos diz que a compreensão das nuances e dos dilemas da construção do tempo da escola poderá nos ajudar a corrigir os problemas de evasão, reprovação e repetência que atingem, sobretudo, os setores populares e os exclui da instituição escolar.
Assim como o tempo, o espaço da escola também não é neutro e precisa passar por um processo de desnaturalização.
O espaço escolar exprime uma determinada concepção e interpretação de sujeito social.
Podemos dizer que a escola enquanto instituição social se realiza, ao mesmo tempo, como um espaço físico específico e também sociocultural.
No que concerne ao espaço físico da escola, é importante refletir que ele exprime uma determinada concepção e interpretação de sujeito social. Como será a organização dos nossos espaços escolares? Será que o espaço da escola é pensado e ressignificado no sentido de garantir o desenvolvimento de um senso de liberdade, de criatividade e de experimentação? Será que a forma como organizamos o espaço possibilita ao aluno e à aluna interagir com o ambiente, arranjar sua sala de aula, alterá-la esteticamente, movimentar-se com tranqüilidade e autonomia? Ou o espaço entra como um elemento de condicionamento e redução cultural de nossas crianças, adolescentes e jovens?
Enquanto espaço sociocultural, a escola participa dos processos de socialização e possibilita a construção de redes de sociabilidade a partir da inter-relação entre as experiências escolares e aquelas que construímos em outros espaços sociais, tais como a vida familiar, o trabalho, os movimentos sociais e organizações da sociedade civil e as manifestações culturais.
Pensar o espaço da escola é considerar que o mesmo será ocupado, apropriado e alterado por sujeitos sociais concretos: crianças, adolescentes, jovens e adultos. Esses mesmos sujeitos, no decorrer das suas temporalidades humanas, interagem com o espaço e com o tempo de forma diferenciada.
Será que essa tem sido uma preocupação da educação escolar? Será que ao pensarmos a gestão da escola consideramos a organização dos espaços escolares como uma questão relevante? Será que exploramos o conteúdo histórico e político imerso na arquitetura escolar?
Compreender a percepção e utilização do espaço pelas crianças, adolescentes, jovens e adultos é um desafio para os(as) educadores(as) e uma questão a ser pensada quando reivindicamos uma escola democrática e um currículo que contemple a diversidade. A construção de uma escola democrática implica em repensar as estruturas e o funcionamento dos sistemas de ensino como um todo, como, por exemplo, reorganizar o coletivo dos(as) professores(as), criar tempos mais democráticos de formação docente e dos alunos, alterar a lógica e a utilização do espaço escolar e garantir uma justa remuneração aos educadores e educadoras.
Ao discutirmos sobre o espaço, fatalmente, o tempo escolar será questionado. Para construir uma nova forma de organização dos tempos teremos que superar a idéia de um tempo linear, organizado em etapas em ascensão, calcado na idéia de um percurso único para todos e da produtividade. É preciso pensar o tempo como processo, comoconstrução histórica e cultural.
A articulação entre currículo, tempos e espaços escolares pressupõe uma nova estrutura de escola que se articula em torno de uma concepção mais ampla de educação, entendida como pleno desenvolvimento dos(as) educandos (as). Só assim os(as) alunos(as) serão realmente considerados como o eixo da ação pedagógica e da realização de toda e qualquer proposta de currículo. Dessa forma, os conteúdos escolares, a distribuição dos tempos e espaços estarão interligados a um objetivo central: a formação e vivência sociocultural próprias das diferentes temporalidades da vida – infância, préadolescência, adolescência, juventude e vida adulta.
Em conseqüência, o tempo escolar poderá ser organizado de maneiras diversas, como, por exemplo, em fluxos mais flexíveis, mais longos e mais atentos às múltiplas dimensões da formação dos sujeitos. Além disso, os critérios do que seja precedente, do que seja reprovável/aprovável, fracasso/ sucesso serão redefinidos a fim de garantir aos alunos e às alunas o direito a uma educação que respeite a diversidade cultural e os sujeitos nas suas temporalidades humanas.
Nesse processo, os instrumentos tradicionais da avaliação escolar e a própria concepção de avaliação que ainda imperam na escola também serão indagados. A avaliação poderá ser realizada de forma mais coletiva e com o objetivo de acompanhamento do processo de construção do conhecimento dos(as) aluno(as) nas suas múltiplas dimensões humanas e não como instrumento punitivo ou como forma de “medir o desempenho escolar”.
Finalizando, é importante considerar que o questionamento às lógicas e práticas cristalizadas e endurecidas de organização dos tempos/ espaços escolares faz parte das lutas e conquistas da categoria docente que, historicamente, vem apontando para a necessidade de uma redefinição e organização da escola a qual inclui, também, a denúncia aos tempos mal remunerados, autoritários, extenuantes e alienantes. Portanto, no tempo da escola estão em jogo direitos dos profissionais da educação, dos pais, mães e dos alunos e alunas. O movimento dos(as) trabalhadores(as) da educação e os movimentos sociais vêm lutando por maior controle e alargamento do tempo de escola, assim como os(as) jovens e adultos(as) trabalhadores(as) lutam por adequar o tempo rígido do trabalho a um tempo mais flexível de educação.
Parafraseando Boaventura de Sousa Santos, ao discutir a relação entre diversidade e organização dos tempos e espaços escolares, podemos dizer que estamos diante de questões fortes que indagam o currículo das nossas escolas e por isso exigem respostas igualmente fortes e ágeis.

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